terça-feira, 6 de setembro de 2011

Tempo

Os ponteiros do relógio jamais poderiam soar mais delicados do que o desabar de um martelo.O tempo passava arrastado, nesse planeta. Os segundos costumavam agarrar no fundo do relógio como pregos afiados que, conforme se moviam,abriam uma fissura, como um terremoto abre uma cratera na terra. Foi um período dificil para eles, que costumavam a andar lado a lado. Não havia nenhuma promessa. Não costumavam conversar muito e a troca de palavras que faziam se restringia a perguntar se sentiam alguma dor e se era possível continuar a caminhar. O que os mantinha unidos, de fato, era a caminhada. Nada mais. Por onde passavam deixavam uma certa curiosidade. Um desejo de se conhecer um pouco mais a respeito deles e dos passos por todos os cantos que haviam andado.Um dia resolveram correr. Foi algo acordado tacitamente. Bastou que um sentisse que os passos do outro começavam a se acelerar para que este acelerasse também os seus. E como numa tentativa de estar sempre lado a lado começaram a mover as pernas muito rapidamente e, quando perceberam, lançavam seus pés para frente como gazelas num imenso cerrado.O impacto dos pés no chão agora eram mais velozes do que os segundos que davam voltas no relógio. Seus passos eram mais rápidos do que o próprio tempo e conforme avaçavam sentiam que deixavam pelo caminho uma borra de passado, que descolava de seus calcanhares como um pouco de lama que tivesse grudado. Nesse momento eles não perteram ao planeta que tremia com o ressoar de cada badalada do relógio. Eles passavam pelo mundo e, nesse momento (como se fosse possível) tinham ainda menos relação com o universo. Faziam parte apenas da brisa que batia contra os rostos e balançava os cabelos. Eram como pequenos gravetos carregados por um pé de vento, dançando pelos ares. Seus músculos tornavam-se visivelmente mais rídidos, mas a sensação era de leveza absoluta. Quanto mais corriam mais sentiam que podiam correr por cada vez mais tempo. Achavam que poderiam flutuar durante um tempo indeterminável e que, um dia, poderiam não mais tocar o solo e apenas fazer movimentos para frente e para trás que, assim como as asas de um pássaro, os fariam alçar vôo. Se desprenderiam por completo dos delicados fios de lã que ainda prendiam seus corpos à terra.Se esses fios fossem rompidos poderiam subir como balões translúcidos. Como flores levadas pela correnteza de um rio de águas escuras. Esse tempo quase se tornou mais fácil para eles. Por breves momentos acreditaram que era possível atravessar o tempo sem que os ponteiros os antigisse com o peso de marretas.Nesses sopros de irrealidade olharam-se pelo canto dos olhos. Quase se viram. Nunca haviam se olhado de frente. Apenas sentiam a presença um do outro ao lado e às vezes trocavam algumas palavras. Não havia promessas.Seus cantos de olhos quase se cruzaram, mas talvez, se virassem as cabeças, descompassariam suas passadas e perderiam o ritmo.Acharam, por alguns instantes, que realmente haviam se visto. Mas não com certeza. Continuaram a correr e os segundos a abrirem crateras no chão em que mal tocavam com seus pés de pássaros.

domingo, 26 de junho de 2011

Gotejar Nocivo

A maneira como aquela maldita gota teimava em desabar do teto e perfurar o chão já ia me fazer perder o juízo. A única coisa que eu precisava era pôr termo àquele quadro. As cores iam bem, as idéias pioneiras já se haviam desenvolvido com fluidez até o estágio em que se encontrava o meu ofício. Mas aquela goteira estava a me fazer de parvo. Não havia caneca, toalha, pinico que cessasse o gotejar inexorável do meu desfalecido telhado. A encantadora pastorinha de minhas pinceladas parecia se afligir com o estrépito das gotinhas no assoalho, o que corroborava com o meu aborrecimento.
Minhas pinturas produzem esse efeito em mim, integramos-nos numa sintonia de sentimentalidade onde o que elas experimentam é parte do meu reconhecimento de mundo. Transfiro lhes minhas mágoas com as cores de plúmbeo e beterraba, terra e ocre, dando lhes um aspecto de frieza, dor e melancolia. Uso muito a cor negra também, que ratifica o meu lado obscuro e mórbido, minha fase lua nova. Quando me sinto tomado de ódio, uso do vermelho sangue, expressando todas as mortes, que seria capaz de fazer com minhas próprias mãos, nas telas de juta. Quando me sinto alegre também pinto, mas a vivacidade que há em meus pensamentos maléficos não se pode comparar aos meus raros momentos harmoniosos.
Maldita goteira. Torturando meus miolos e minhas genialidades com seu bulício calafriliante. Verde inglês, azul ultramar, violeta permanente e azul cerúleo... Ou azul petróleo? Golpeando minha própria cabeça, me rendi ao ser detestável e esdrúxulo que era aquela poça formada ao lado do meu criado-mudo. Peguei minha tela e minhas tintas e a minha amável pastora com feições de desnorteio e fui para o jardim. Verdade que chovia, mas antes o estrondo de milhares de gotas se sobrepondo do que um único cair de água que insistiu em me chamar mais atenção do que a minha ocupação.
Finalizei minha guardadora de gados com leves pinceladas de marrom van Dick, terra de sombra natural, amarelo nápoles e branco de titânio. Ela se parecia levemente com A Bebedora de Absinto, de Picasso, com suas marcas de expressão e de velhice precoce. A minha dama, porém, apesar de solitária como a outra, se encontrava em um ambiente um pouco mais iluminado, embora chuvoso, como no dia em que a criei.
A goteira foi consertada, enfim. Minhas canecas puderam voltar a exercer suas verdadeiras funções de me servirem o extemporâneo chá com canela de minhas tardes exíguas. E meus pinicos, até então pérfidos auxiliadores, me servem como nada.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Intimista

Tão para dentro, tão para dentro que, de repente, entra tanto que vira do avesso.
E aí fica tão exposto que até as moscas podem repousar sobre as suas vísceras.

sábado, 30 de abril de 2011

Facetas

Um grupo de cristãos, sentado em círculo, ouve um relegioso falar sobre Deus. Dão as mãoes e fecham os olhos.
No restaurante ao lado o filho do dono ensaiava sax para a apresentação de natal, com as luzes parcialmente apagadas.
Num apartamento do prédio mais baixo da rua um homem e uma mulher, de aproximadamente 25 anos, dançam juntos, sem música
e no apartamento ao lado três amigas comem brigadeiro e fazem confissões amorosas.
Numa sala um professor ensina matemática ao seu aluno preferido. Seus olhos transbordam de ternura enquanto o menino desenvolve as questões.
Próximo dali uma mulher de 43 anos amamenta seu primeiro filho, concebido por inseminação artificial e a atmosfera do quarto é um bafo quente e alaranjado de aconchegante amor.
Na cidade vizinha dois adultos dormem numa cama de casal e a filha de 6 anos pede para se deitar com eles pois acaba de ter um pesadelo.
O pai se levanta, vai até o quarto da menina e conta uma história sobre princesas e naves espaciais. Ela adormece, sorrindo.
Um casal de amantes faz sexo violentamente, como se o mundo fosse terminar naquele orgasmo.
Outro casal de amantes faz sexo muito lentamente, prolongando aquele ato para toda a eternidade. Transformando o mínimo espaço entre aqueles dois corpos em espaço nenhum.
Apertando os seus corpos um contra o outro com tanta intensidade que entram um no outro e transformam-se em um só.
Duas irmãs assistem juntas a um filme de terror. De repente falta luz e elas gritam de pavor. Depois riem uma da outra.
O terceiro irmão chega sorrateiramente e as surpreende com uma máscara. Elas gritam novamente e novamente riem.
Os três acendem uma vela e brincam de fazer sombras durante toda a madrugada.
Em outra casa um menino confessa para a irmã que usou cocaína. Ela dá um tapa em seu rosto. Sente raiva dele, que abaixa os olhos enrubrecendo.
Abraça-o vigorosamente, sentindo pelo irmão uma compaixão sem fim e os dois choram.
Um grupo de amigos senta em uma mesa de bar para conversar e relembrar acontecimentos, bebedeiras, antigos amores, política e poesia. Nenhum tem menos de 65 anos.
Na mesa ao lado três jovens reconhecem os poetas famosos. Os dois estudantes de letras e o estudante de direito mal podem acreditar que tem seus maiores exemplos
a menos de dois metros deles e, numa angústia exagerada, numa timidez coberta de excitação, pulam até a mesa dos sete senhores, se apresentam - seus maiores discipulos -
e pedem para que eles recitassem uma poesia, estrofe, versos soltos, palavras perdidas. Os poetas antigos se comovem com tamanha admiração. Pedem para unirem-se a eles.
Os jovens pensam que podem morrer naquele momento, que nada mais importaria. Os 10 poetas reunidos conversam sobre tudo. Falam, sobretudo e apaixonadamente sobre poesia.
Todos poderiam morrer naquele momento pois nada mais importaria.
Depois do culto religioso o grupo se despede. Um homem de 30 anos leva o pai para casa. O pai sofre de alzheimer e o filho o leva três vezes por semana a um culto religioso
para conhecer as palavras de deus e para sentirem-se reconfortados por elas. Depois, no fim do dia, leva-o a praia para que o dourado da tarde embeleze seu dia,
o cair da noite lhes refresque a alma, o azul do mar adoce seus olhos e o calor da areia lhes acaricie os pés.
O filho pinta o pôr-do-sol enquanto o pai brinca como criança nas pequenas ondas que lambem a praia. Voltam para casa de mãos dadas, com o afeto irradiando por todo o bairro.
O homem que sofre de alzheimer é deixado na clínica todas as noites com seus amigos de buraco e com enfermeiras amáveis por seu adorado filho.
Na manhã seguinte é arrancado de sua cama por mulheres rudes, vestidas de branco e por um homem barbado, magro e de enormes olhos castanhos, que afirma ser seu filho,
mas que ele tem certeza (certeza!) de que nunca viu na vida.
Saem do culto, também, duas amigas, com 18 e 16 anos. Melhores amigas. Elas começaram a frequentar esse culto há pouco mais de um mês. Sentem-se seguras e acolhidas por esse grupo.
Buscam algum tipo de orientação para seus espíritos e aquelas palavras trazem certo conforto.
Aquela noite, no entanto, saíram sentindo dentro de si um leve incômodo que não sabiam identificar.
Andaram alguns quarteirões em silêncio, até que a de 18 anos rompe esse manto suave que as cobria e protegia de ruídos: "Meus pais me mandaram sair de casa.".
A outra a observa longamente. Sem perceber pararam justamente embaixo de um poste que as iluminava com uma luz amarelada. Ela retoma: "Eles acham que preciso ser independente.".
A de 16 anos continua mirando a amiga. Percebe as lágrimas se acumulando no canto daqueles enormes olhos verdes e sente o coração se expremendo como um balão de gás esvaziado.
Infinitamente melancólico. Passa as mãos nos cabelos loiros dela e a envolve num abraço. Um abraço gigante, onde cabem todas as lágrimas e angústias da amiga.
Onde a cabe inteira, mesmo medindo 1,73m, enquanto ela mesma só tem 1,57m. Onde cabe o mundo.
A menina loira, alta, de olhos verdes enormes acalma os soluçõs nos braços da outra que lhe parece infinitamente maior, embora só tenha 16 anos e 1,57m.
Olham-se nos olhos. Sentem uma pela outra um carinho sem medida. Sem começo nem fim. Um amor grandioso e delicado. Beijam-se suavemente, como se selassem num pacto aquele sentimento.
O dono do restaurante ao lado também sai do culto com sua esposa numa cadeira de rodas. Eles sofreram um acidende de carro há oito anos. Ele dirigia, mas estava exausto.
Ela adormeceu no banco do carona e os dois filhos dormiam no banco de trás. Em um segundo que seus olhos ralentaram ao piscar perdeu o controle do carro, que capotou duas vezes.
Sua mulher sofreu fraturas de coluna e craniana. Seu filho mais velho, de 13 anos, morreu na hora e o mais novo, de 8, perdeu uma perna.
O homem passa pelo restaurante, busca o filho, que agora tem 16 anos e toca sax lindamente e os leva para casa. Enquanto todos dormiam ele chorava.
Primeiro de maneira discreta e triste, depois suas lágrimas se transformaram em soluços violentos e compulsivos. Chorou uma dor desesperada. Uma dor inconcebível.
Uma dor inexplicável. Uma dor que só um homem que arrancou a liberdade da esposa, a perna de um filho e a vida de outro pode sentir.
No meio da rua um bloco de carnaval passou por entre transeuntes. Máscaras de papelão que estampavam rostos sofridos e eufóricos.
As expressões oscilavam da máxima alegria à tristeza absoluta. Não havia nenhum nuance demonstrativo que passasse entre esses dois extremos.
Assim como numa fotografia em branco e preto onde os contrastes se fazem mais presentes que as graduações de cinza.
Desfilaram máscaras com sorrisos rasgados e olhos melancólicos.Bocas abertas em choro fatídico e olhos esbugalhados com lágrimas de vidro.
Um entrelaçar de cabeças com sentimentos fulgazes. Caminhavam pelas ruas numa procissão e seus corpos vestidos de preto se esbarravam sensualmente.
Encostavam seus corpos uns nos outros, enquanto moviam-se juntos, chorando e rindo em silêncio. Esfregaram-se e, um a um, começaram a se tocar.
Começaram a dançar, misturando claros e escuros de emoções opostas. Os rostos de papel beijaram e lamberam outros rostos de papel,
transformando recortes bem delineados em amassados e borrões. Metiam as línguas em oríficios de bocas rasgadas e olhos esbugalhados até arrombarem esses esboços de rostos humanos.
Até reduzirem esses desenhos a personagens disformes. Monstruosidades. Abraçando uns aos outros, penetrando uns nos outros.
Fudendo, todos juntos, no meio daquela rua. Pequenas aberrações vestidas de preto. Até que os beijos molhados foram pouco a pouco violentando aqueles corpos sem rosto.
Até que as carícias foram ferindo. Até que o que era agrado tornou-se estrago. Até que mãos brancas e frias cravaram as unhas até se tingirem de vermelho.
O que era inteiro converteu-se em pedaço. E o que era movimento alterou sua essência. Ficou estático na calçada. Pedaços de carne compondo um quadro orgânco.
Entre esses intervalos temporais, intervalos de branco e preto, milhares de facetas existiram. Quem se ateve aos extremos de máscaras de papelão não pode perceber.
Destruíram os detalhes. Desfizeram as sutilezas. Sobrou um pouco de matéria bruta no chão. O que restou acima dele foi brisa etérea. Ninguém pode enxergar.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Almoço de domingo

Riu-se. E como de costume tremeu o corpo todo. Toda a sua opulencia sacudia-se com a gargalhada gostosa, longa.
Tinha o cheirinho de maçã com canela, dos bolos que fazia. Sempre que me recordo dela me vem os olhos castanhos e alegres, sorrindo o tempo inteiro pra mim.
É assim que vou desenhando minhas memórias. Lembrando das cenas entrecortadas, dos perfumes, dos gostos,
e vou juntando uma peça na outra, como em um quebra-cabeça.
Vou construindo meu passado como um mural de fotografias. Adiciono sempre uma música de fundo, para me confortar.
Às vezes adiciono também algumas lembranças de um filme que assisti, faço algumas modificações
e crio outros momentos felizes, porque todo mundo precisa de passagens bonitas na vida.
Não que eu não as tenha, mas algumas se perderam no vasto terreno da minha fraca memória.
Então não sei dizer muito bem até que parte as lembranças são minhas e a partir de onde são lembranças alheias que recolhi e acolhi ao longo dos livros e histórias
que me percorreram.
Chegava na casa dos meus avós todo o domingo para o almoço de família e meu avô vinha mancando com a perna que não dobrava,
devido a um ferimento que sofreu na guerra, me abraçar. Me olhava com aqueles olhos muito azuis e perguntava com aquele sotaque espanhol, quase indecifrável pra mim:
"Quieres un caramelo, niña?" Sacava de dentro do armário um pote cheio de balas de cereja e me deixava pegar um monte delas.
Minha avó estava sempre risonha, com os caracóis prateados enfeitando seu rosto e um óculos enorme que a deixava com um ar eternamente doce.
Sua figura me lembra uma coruja antiga e sábia.
Ficava tão feliz quando chegavamos que não parava de falar.Falava e ria-se. Sacudia-se por inteira.
Contava as novidades, me abraçava muito e sempre cozinhava um banquete, que fazia com que nós passássemos a semana comendo os restos das delícias.
Comprimentava a todos e depois subia as escadas comigo, para o segundo piso, e passavamos um tempo sem fim brincando de bonecas.
Brincavamos sem pausas, até que meu avô nos convocava pra oração de antes das refeições. Sentávamos à mesa e ouvíamos a rádio espírita que abençoava a comida e a todos.
Comíamos uma refeição farta e vegetariana. Finalizávamos aquele momento juntos comendo os doce que minha avó preparava. Pecava pelo excesso, sempre.
Aquelas tardes eram verdadeiramente aconchegantes e cheias de maravilhas. Depois dos meus pais passarem a tarde conversando com meu avô, por vezes, com meu tio e minha tia,
e eu brincar e ouvir histórias mágicas sobre burrinhos verdes e dar alface e tomate pro Jorgiho, o cágado, eu pedia insistentemente pra dormir lá.
Por mim, esses dias na casa deles, não teriam fim nunca.
Nos dias que meus primos também iam pra lá nós brincavamos de pique-esconde no jardim. Eu sempre me escondia no meio das flores.
Uma vez eu me escondi atrás da Comigo-Ninguém-Pode. Meu primo, que é mais velho do que eu uns 4 anos,
disse que eu nunca mais poderia colocar os dedos nos olhos e nem na boca.
Mesmo que eu lavasse as mãos um milhão de vezes eu iria morrer envenenada quando fosse comer alguma coisa.
Eu chorei tanto que ele teve que me provar que eu não ia morrer colocando ele mesmo a mão na planta e depois na boca.
Na parte de trás da casa ficava uma área reservada pro Jorginho, que depois que meus avós faleceram e nós o doamos para o Jardim Botânico desobrimos que era Jorginha.
O cágado ficava sempre escondido debaixo de uma montanha de folhas secas.
Eu levava alface e tomate pra ele e, enquanto eu o chamava pelo nome, ia pouco a pouco se mostrando. Vinha devagarzinho, esticava o pescoço e comia na minha mão.
Era um ritual incrível.
Outra lembrança que tenho é das vezes em que eu tomava banho lá e a minha avó derramava o vidro quase inteiro de perfume de alfazema em mim.
Eu ficava cheirando a alfazema por dias. Ela dizia que era bom pra matar piolhos, acalmar as crianças, harmonizar o espirito e matar os gérmes.
O cheiro da alfazema é o cheiro dessa época.
No andar de cima tinha um quarto que nós chamavamos de quarto do entulho. Lá havia as mais variadas bugingangas e troços sem utilidade.
Era lá também que ficavam guardados todos os jogos e brinquedos que eu adorava.
O que era um problema, porque a rinite alérgica e bronquite me condenavam todas as vezes que eu adentrava o paraíso.
Hoje senti a nostalgia me invadindo primeiro pelas narinas e depois consumindo o resto do corpo inteiro.
Foi o cheiro de comida que vinha da rua que deu inicio a essa sequencia de recordações.
Me fez lembrar de coisas que eu já nem sabia mais que ainda habitavam o terreno das memórias esquecidas.
Então, num impulso saudosista e de sensibilidade exagerada, resolvi percorrer de novo essas tardes e visitar a casa dos meus avós.
Comecei entrando pelo portão da frente, branco, que se iluminava por raios de sol tímidos do final da tarde, que escorriam por entre os galhos das árvores.
Passei pela varanda e me deparei com o hall de entrada, todo branco. Vovô sentado em frente a televisão, na sala ao lado. O vi do hall.
Começou um filme de guerra e ele rapidamente a desligou. Odiava filmes de guerra. Pegou a bengala e mancou até onde eu estava.
Usava calças compridas, cáqui, uma blusa branca e os suspensórios.
Me olhos com os olhos azuis enormes e senti seus fios de cabelo brancos e macios como a penugem de um pássado contra o meu rosto, enquanto me abraçava.
Atravessei a sala e o corredor e minha avó estava arrumando a mesa da copa para o almoço.
Édina, a moça que trabalhou lá desde que eu era 'uma minhoquinha branca', ajudava-a. Minha avó ficou muito feliz com a visita. Riu bastante e me abraçou muito.
Falava sem parar. Um vestido de flores pequenas e a armação dos óculos de coruja enquadravam olhinhos de luz.
Percorri a casa toda. Passei pelos corredores e tentei redesenhar todos os quadros das paredes. Todas as santas em seus devidos reservatórios. Achei os pequenos livros.
Comi uma bala de cereja. Entrei no quarto de cima. Meu paraíso infantil. Aspirei aquela lembrança junto com todos os ácaros e senti que já nao me faziam espirrar.
Depois desci as escadas e visitei o Jorginho. Lembrei de todas as fadas e duendes que dividiam comigo o jardim daquela casa.
Dividiam comigo as noites em que eu demorava a dormir e observava meus avós, um em cada cama, dormindo profundamente.
Minha avó ressonando e meu avô coberto por uma tela que protege bebês de insetos. Ele tinha uma pele muito delicada e qualquer picada de mosquito feria essa superficie alva e fina.
Hoje não sei dizer o que me fazia acreditar em criaturas místicas. Se era o sono, a imaginação, os livros, ou as tardes e noites na casa dos meus avós.
Dessa vez não foram eles que vieram me visitar, mas eu que os procurei nos cantos da sala, cozinha e jardim. Embaixo de pedras e dentro das flores.
Encontrei todos eles. Percorri aquela casa e passei meus dedos pelas paredes insólidas. Sentei no banco que não existe mais. Pousei meus olhos sobre aquela casa com contornos cada vez mais difusos.
O quarto de brinquedos, já não sabia mais se ficava no andar de cima ou debaixo. E no corredor de baixo uma porta se abria e eu já nao me lembrava mais para o que.
Na verdade ela não se abria mais. Guardava ali dentro alguma reminiscência que eu não tinha acesso. A copa se esfumaçava enquanto os objetos iam sumindo pouco a pouco.
Não havia mais mesa. Paredes desapareciam e a geografia da casa se alterava. Nada além de mim vagava naquele terreno.
Ainda podia ouvir o som da rádio espírita, muito ao longe, abençoando o almoço que não teríamos nesse domingo.
Pelo menos o portão ainda existia. Não era mais branco, mas os raios de sol ainda iluminavam timidamente, escorrendo por entre os galhos das árvores.

sábado, 9 de abril de 2011

Estabanamento ou amor

Manchei você com tinta. Fiquei tão apaixonada pelas estrelas do céu da sua boca que derrubei minhas latas de tinta sobre você.
Foi estabanamento ou amor.
Fiquei com medo de você ficar triste, mas não tinha um cinza em você. Respingou muito amarelo, rosa, verde, azul e laranja.
Me encostei em você pra te resgistrar em mim e fiquei de muitas cores.
Guardei umas nuvens que achei no fundo da minha xícara de chá e servi pra você. A consistência é leve e você pode ficar com elas.
Hoje, quando acordei, o amanhecer tinha sido aberto com uma faca.
O céu tava rosa e tinha passarinho voando.
Como eu sabia que você ainda dormia, costurei a noite de volta.
Ficou tudo azul marinho e eu fiz uns furinhos no firmamento pra luz passar.
Ficou fresco. Ficou macio, o tempo. Igual a asa de borboleta quando você passa o dedo.
Pousaram umas na minha cama, quando a tarde caiu. O céu não tava nem azul marinho e nem rosa. Tava laranja.
As borboletas flutuaram pela janela do quarto até acharem meu travesseiro.
Acharam meus cabelos deitados no travesseiro, enquanto eu lia um conjunto de folhas que a gente chama de livro.
Depois acharam meus ouvidos que tavam ouvindo o silêncio. Aí entraram todas nos meus ouvidos, as borboletas.
Fizeram um ninho lá dentro e nasceu uma música.
Quando o céu tava laranja e tinha uma música num ninho dentro dos meus ouvidos eu beijei uma rã.
Ela era verde quase terra, quase mato.
Sorriu e me contou uma história de joaninha que vive dentro de flor.
Hoje achei uns poemas dentro de uma concha. O sol era amarelo manga e meu sorriso também.
Li os poemas e peguei um balão. Subi igual aos passarinhos que achei na manhã que costurei. Subi tão alto que fui até o espaço.
Encontrei uns astronautas que falavam de dunas de areia e oceânos e disse a eles que tinha um ninho de borboletas dentro de mim.
Eles me mandaram procurar uma árvore e despejar um quilo de distração nela.
Procurei uma árvore distraída e pinguei gotas de lavanda.
Ela devolveu bolhas de sabão que tinham borboletas dentro. Tinha também uma lagartixa, macia como a asa de borboleta quando você passa o dedo.
Fresca como a noite azul marinho e leve como as nuvens da minha xícara de chá.
Manchei você com as cores do meu dia. Acho que você não ficou triste porque era um dia meu pra você. Porque eu registrei você em mim.
Acho que os astronautas te contaram que eu costurei aquela manhã aberta com faca.
Ou então foi aquela rã. Ou então foi estabanamento ou amor.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Quietude nociva

Muito se fala e tudo se cala.
Sou palavras abertas para você se expressar, mas insistes em usar o dicionário.
Há, entre, muitos parêntesis.
Há, além, muito pendente.
O que se há de fazer com essas reticências no meu colo
ou com esse silêncio em minhas mãos?