domingo, 19 de dezembro de 2010

Um dia de aula

Encontro algumas nuvens dentro do meu café e começo a mordiscá-las entre um gole e outro.
Terminei a xícara e limpei o bigode de leite com uns pedaços de algodão que restavam no fundo.
Peguei o onibus e sentei sozinha, logo atrás do motorista.
Gosto de sentar na janela para o vento bater bem forte no meu rosto e para que eu possa sentir os meus cabelos voando desordenadamente.
Na segunda parada da viagem vejo, pelo canto dos olhos, um senhor sentar ao meu lado.
Era um senhor com uns fios de cabelo tão finos que pareciam uma delicada penugem de neve.
Ele era tão frágil e curvado que qualquer sopro parecia ser capaz de parti-lo em pedacinhos miudos ou levá-lo embora.
Fechei rapidamente a janela para que o vento não o incomodasse. Ele tossiu debilmente e depois sorriu.
- Você está com frio? Esse calor terrível a você vai ter coragem de me deixar sem uma brisa como refresco?
Hesitei um pouco e perguntei se o vento não estava muito forte para ele.
Ele fez que não com a cabeça. Abri novamente a janela, um pouco menos dessa vez.
Ele, como um bom cavalheiro, se apresentou para mim, falando num tom de voz tão baixo que, mesmo sentada ao seu lado, tive que me aproximar para escutá-lo.
- Me chamo Leonardo.
Contou-me que na semana seguinte completaria 90 anos. Estava na flor-da-idade.
Estava indo para antiga fábrica de sardinhas, onde poderia dar uma caminhada. Um dos prazeres que cultivava.
Na semana seguinte iria para Maricá, para o seu sítio. Ia sozinho.
- Meus filhos não me procuram não. Mas eu posso culpá-los? Eles tem as famílias deles. E eu vou comigo. Que é a melhor companhia que eu tenho.
Me falou das noites no sítio em que anda por uma estrada onde a única luz é a da lua.
Vai andando devargarzinho, ouvindo os barulinhos que vem da mata e sentindo seus músculos desgastados trabalhando, seus ossos cansados firmando seu corpo e seu coração antigo pulsando.
Pergunto se ele não tem medo de andar sozinho. Mas ele me garante que não há nada como estar consigo mesmo. Acredito plenamente.
Tiro os óculos escuros e sinto um contato maior.
- Que olhos bonitos! Você tem olhos de gato. Ou de peixes.
- Peixes?
- É. Peixes. Água. Mar.
Me conta de uma menina que ele namorou na juventude. Ela tinha os olhos de peixes, iguais aos meus. Foi o primeiro amor da vida dele.
Depois me contou de outros amores. De desamores. Contou das mulheres que cruzaram com ele. Mulheres direitas e mulheres da vida. Cada uma com uma história, um destino.
Contou da mulher com quem dividiu sua escova de dente e o resto de sua vida.
Dos filhos que tiveram juntos, da felicidade que ela lhe deu e do vazio que deixou quando se foi.
- Engraçado. Ela também tinha os olhos de peixes.
Sorri.
Ergueu os braços frágeis e apontou com os dedos de gravetos para a lua que era possivel de se ver, mesmo durante o dia.
- Sabe essa coisa bonita que ilumina as noites e as nossas idéias?
Fiz que sim.
- Ela ilumina também o nosso coração, sabia?
Declarou, por fim, que o que importava na vida ele já tinha.
- Não tô dizendo que não quero mais nada e que já podem me levar, não!
Deixou claro.
- Quero ir pro meu sítio, fazer longas caminhadas durante a noite e durante o dia. Quero encontrar uma mulher que queira dividir comigo os finais dos dias.
E isso não é pouco. Eu tive uma mulher que dividiu comigo todas as luas, crepúsculos, nasceres do sol e sol a pino.
Essa mulher dividiu comigo a vida dela e eu dei pra ela a minha. Meu coração ela levou.
Mas ainda tem um corpo aqui que precisa ver alguns pôr-do-sol e esse corpo precisa de companhia.
Me contou ainda que tem muitos planos, mesmo sem saber se será possível realizá-los.
- Não importa tanto se eu vou conseguir fazer tudo. Mas se eu quero então eu já comecei a conquistar.
Me aconselhou a continuar sorrindo porque assim eu conquistaria mundos inimagináveis. Me aconselhou a caminhar sempre porque faz bem pro corpo e pra mente.
Me aconselhou a me apaixonar muito e muitas vezes. Por vários ou pela mesma pessoa. Me aconselhou a ouvir os barulhos da mata e do meu corpo porque esses são os mais sábios e reveladores.
Me aconselhou a me cuidar, me proteger, não dá bola pra qualquer um porque tem muita gente má por aí.
Me aconselhou a manter os olhos de peixes sempre brilhantes e cheios de mar.
Me aconselhou a admirar a lua porque ela deixará minhas noites mais poéticas e meus dias mais bonitos.
Me aconselhou a andar sempre na minha própria companhia porque essa seria a pessoa mais sincera e companheira que eu poderia achar.
Por fim, me aconselhou a visitá-lo, porque ele já ia descer do ônibus, mas que achava muito aconselhavel termos outra conversa,
porque há muitas coisas ainda para serem aconselhadas, mesmo que eu não siga metade delas.
- Eu moro na rua do lado da igrejinha de São Sebastião. Minha casa é a de número 3. Passa lá. A gente pode conversar mais.
Desceu do ônibus e eu, infatilmente, corri para a janela para acenar.
Vi aquele homem com mãos de graveto gesticulando o número 3, de sua casa. Ficanda cada vez menor e mais frágil.
Senti um aperto no peito de tanta ternura.
Ainda tenho muito o que aprender e tenho um professor disposto a me ensinar.

2 comentários:

  1. Que texto lindo Isadora...Gostei muito da simplicidade e da ternura que ele passa.

    "Não importa tanto se eu vou conseguir fazer tudo. Mas se eu quero então eu já comecei a conquistar."
    é isso. Simples não? ^^

    :*

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  2. Isso foi de verdade? Me pareceu o tipo de coisa que tem a sua cara de que poderia acontencer a qualquer momento, uma vez que você é uma pessoa tão simpática... hahhaa

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