terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Instinto

A lombriga rasteja sua carcaça robusta.
Todos sentem ojeriza quando o verme se arrasta,
mas a menina gosta do jeito que ele se encolhe e depois espreguiça.
Sente, então, como um verme e brinca de rastejar no chão.
Perto do solo o vai-e-vem da lombriga hipnotiza a menina
que se faz comprida esticando os dedinhos
e logo em seguida esconde o rosto, as mãos e o joelho como uma ostra.
Quer tocar a lombriga.
Quer chegar mais perto e segurá-la.
Quer, num ato de autoridade, esmagá-la entre as mãozinhas
e ordenar que seja menos lânguida, menos escorregadia, menos maleável e menos interessante.
Quer, em verdade, trocar de corpo com aquele ser incrível.
Quer tornar-se um verme.
Por inteligência ou instinto come a lombriga.
A menina rasteja sua carcaça robusta.
Todas as crianças gostam do jeito que ela se encolhe e depois espreguiça.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Um dia de aula

Encontro algumas nuvens dentro do meu café e começo a mordiscá-las entre um gole e outro.
Terminei a xícara e limpei o bigode de leite com uns pedaços de algodão que restavam no fundo.
Peguei o onibus e sentei sozinha, logo atrás do motorista.
Gosto de sentar na janela para o vento bater bem forte no meu rosto e para que eu possa sentir os meus cabelos voando desordenadamente.
Na segunda parada da viagem vejo, pelo canto dos olhos, um senhor sentar ao meu lado.
Era um senhor com uns fios de cabelo tão finos que pareciam uma delicada penugem de neve.
Ele era tão frágil e curvado que qualquer sopro parecia ser capaz de parti-lo em pedacinhos miudos ou levá-lo embora.
Fechei rapidamente a janela para que o vento não o incomodasse. Ele tossiu debilmente e depois sorriu.
- Você está com frio? Esse calor terrível a você vai ter coragem de me deixar sem uma brisa como refresco?
Hesitei um pouco e perguntei se o vento não estava muito forte para ele.
Ele fez que não com a cabeça. Abri novamente a janela, um pouco menos dessa vez.
Ele, como um bom cavalheiro, se apresentou para mim, falando num tom de voz tão baixo que, mesmo sentada ao seu lado, tive que me aproximar para escutá-lo.
- Me chamo Leonardo.
Contou-me que na semana seguinte completaria 90 anos. Estava na flor-da-idade.
Estava indo para antiga fábrica de sardinhas, onde poderia dar uma caminhada. Um dos prazeres que cultivava.
Na semana seguinte iria para Maricá, para o seu sítio. Ia sozinho.
- Meus filhos não me procuram não. Mas eu posso culpá-los? Eles tem as famílias deles. E eu vou comigo. Que é a melhor companhia que eu tenho.
Me falou das noites no sítio em que anda por uma estrada onde a única luz é a da lua.
Vai andando devargarzinho, ouvindo os barulinhos que vem da mata e sentindo seus músculos desgastados trabalhando, seus ossos cansados firmando seu corpo e seu coração antigo pulsando.
Pergunto se ele não tem medo de andar sozinho. Mas ele me garante que não há nada como estar consigo mesmo. Acredito plenamente.
Tiro os óculos escuros e sinto um contato maior.
- Que olhos bonitos! Você tem olhos de gato. Ou de peixes.
- Peixes?
- É. Peixes. Água. Mar.
Me conta de uma menina que ele namorou na juventude. Ela tinha os olhos de peixes, iguais aos meus. Foi o primeiro amor da vida dele.
Depois me contou de outros amores. De desamores. Contou das mulheres que cruzaram com ele. Mulheres direitas e mulheres da vida. Cada uma com uma história, um destino.
Contou da mulher com quem dividiu sua escova de dente e o resto de sua vida.
Dos filhos que tiveram juntos, da felicidade que ela lhe deu e do vazio que deixou quando se foi.
- Engraçado. Ela também tinha os olhos de peixes.
Sorri.
Ergueu os braços frágeis e apontou com os dedos de gravetos para a lua que era possivel de se ver, mesmo durante o dia.
- Sabe essa coisa bonita que ilumina as noites e as nossas idéias?
Fiz que sim.
- Ela ilumina também o nosso coração, sabia?
Declarou, por fim, que o que importava na vida ele já tinha.
- Não tô dizendo que não quero mais nada e que já podem me levar, não!
Deixou claro.
- Quero ir pro meu sítio, fazer longas caminhadas durante a noite e durante o dia. Quero encontrar uma mulher que queira dividir comigo os finais dos dias.
E isso não é pouco. Eu tive uma mulher que dividiu comigo todas as luas, crepúsculos, nasceres do sol e sol a pino.
Essa mulher dividiu comigo a vida dela e eu dei pra ela a minha. Meu coração ela levou.
Mas ainda tem um corpo aqui que precisa ver alguns pôr-do-sol e esse corpo precisa de companhia.
Me contou ainda que tem muitos planos, mesmo sem saber se será possível realizá-los.
- Não importa tanto se eu vou conseguir fazer tudo. Mas se eu quero então eu já comecei a conquistar.
Me aconselhou a continuar sorrindo porque assim eu conquistaria mundos inimagináveis. Me aconselhou a caminhar sempre porque faz bem pro corpo e pra mente.
Me aconselhou a me apaixonar muito e muitas vezes. Por vários ou pela mesma pessoa. Me aconselhou a ouvir os barulhos da mata e do meu corpo porque esses são os mais sábios e reveladores.
Me aconselhou a me cuidar, me proteger, não dá bola pra qualquer um porque tem muita gente má por aí.
Me aconselhou a manter os olhos de peixes sempre brilhantes e cheios de mar.
Me aconselhou a admirar a lua porque ela deixará minhas noites mais poéticas e meus dias mais bonitos.
Me aconselhou a andar sempre na minha própria companhia porque essa seria a pessoa mais sincera e companheira que eu poderia achar.
Por fim, me aconselhou a visitá-lo, porque ele já ia descer do ônibus, mas que achava muito aconselhavel termos outra conversa,
porque há muitas coisas ainda para serem aconselhadas, mesmo que eu não siga metade delas.
- Eu moro na rua do lado da igrejinha de São Sebastião. Minha casa é a de número 3. Passa lá. A gente pode conversar mais.
Desceu do ônibus e eu, infatilmente, corri para a janela para acenar.
Vi aquele homem com mãos de graveto gesticulando o número 3, de sua casa. Ficanda cada vez menor e mais frágil.
Senti um aperto no peito de tanta ternura.
Ainda tenho muito o que aprender e tenho um professor disposto a me ensinar.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Floresta

A névoa densa deixava o bosque branco. Tudo era muito fresco. A copa do carvalho, muito frondoso, misturava-se às outras árvores.
A luz entrava suavemente, sem agredir nenhum ser vivo. Sem interferir no fluxo do orvalho.
O acúmulo da garoa que caiu durante a noite fazia com que as folhas pendessem preguiçosamente.
O som silencioso dos seus cascos só podia ser ouvido pelos seres muito pequenos, pois o resto da floresta ainda dormia.
Desfilou por entre os antigos carvalhos, sentindo o ar gelado do início do dia passar por entre os fios da crina incrivelmente branca.
Postou-se ao lado da maior árvore do bosque. Diferente de todas as outras árvores, a ramada dessa entidade eram enormes flores e não folhagem.
A gigante vestia-se com pétalas de cores translúcidas que, ao serem penetradas pelos raios do sol, refletiam no chão um vitral.
O pelo claro do unicórnio refletia todas as cores. Achava-se numa calma ímpar, repousando sob a proteção da mãe da floresta.
O ar tinha um feitiço etéreo e claramente traços de um não-lugar. Uma não-superfície-terrestre.
Um espaço fora do espaço, com um céu recoberto de luas gigantes, tão próximas que ao esticar os braços a distância entre as pontas dos dedos e a superfície alva do astro se tornava mínima.
As cores desse terreno eram suaves.
Cada ser-vivo que brotava do chão tinha contornos difusos e reflexos harmoniosos, dando ainda mais a impressão de que se caminha em um tempo onírico.
Ouve-se, baixinho, a vida que habita em árvores milenares, pedras espaciais e solo fértil.
Milhares de vidas tecendo uma melodia de passos miúdos e bater de asas expressivo.
Uma joaninha escala a aste de um gerânio e oberva.
Uma libélula sobrevoa um jardim de violetas.
Uma lagartixa risonha move a cauda lentamente.
Uma formação de nuvens no alto de uma montanha cresce, ganhando dimensões extraordinárias.
O unicórnio repousa, uma joaninha orbserva, uma libélula lambe violetas, uma lagartixa sorri.
A floresta ganha aos poucos uma sombra magistral. Mansa.
A organização de cinzas no céu carrega vida e dissoluções.
As luas se viram de lado, retirando um pouco da sua beleza de prata para descanso.
Uma trovoada ressoa dentro do sonho e um dilúvio quimérico se joga do precipício.
Cristais vítreos despencam do céu e encharcam.
Todas as possibilidades se tornam paupáveis e tudo fica inebriado de acaso.
Os sentidos se aguçam e a tempestade realiza seu espetáculo.
Os seres não são espectadores ociosos. Participam.
Constroem a teia de divagações, ilusões, num terreno de não-lugar.
Onde os vitrais refletidos no chão são pétalas de flores, unicórnios flutuam entre carvalhos e uma joaninha observa.
Os satélites naturais são astros possíveis de se tocar. Tudo é muito fresco e a névoa densa deixa o bosque branco.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Poesia amarela

Olhei uma lista de cores amarelas
e pensei que eram todas diferentes entre elas.
Tanta tinta tosca que tava tudo trabalhoso.
As tintas amarelas eram, no final das contas,
todas amarelas, todas janelas.
Quando a gente quer fazer alguma arte
pensa em fazer pintura ou desenho.
Não sei porque a gente vê a arte
mais inteira nessa parte.
Talvez seja porque "ver" seja praxe.
E dentro dos quadros, pinturas e desenhos
a primeira coisa que se faz é olhar.
Sem se dar conta que a melhor parte da arte
tá em cada fragmento do ar.
Tá em ser o lugar, não importa onde, nem como.
A arte tá escondida um pouco debaixo das estantes
e dentro de potinhos pequenos.
Ela não se oculta porque quer,
mas o tal "olhar" (tão importante na hora de ver quadros pintados de amarelos variados)
fica abobado quando passa por estante e potinho.
Esquece de ver direito e a arte não fica evidente.
Aí o problema não é da arte ser menor,
é do olho ficar torto e olhar enviezado pro bonito que não se escancara.
Fica aquela coisa meio desbotada e grita-se: À ARTE! PERO, DONDÉ ESTÁS?
Quando a poesia começa a se escrever,
dentro ou fora do papel, a arte escondida fica em primeiro plano.
Porque a poesia é a arte inteirinha.
Mesmo que você não possa ver nem tocar.
Às vezes não dá nem pra ouvir.
Porque, às vezes, poesia não é escrita com papel e caneta.
Às vezes poesia não gosta de usar as palavras.
Se encontra no corpo da arte que paira no ar e cola.
Esse é um grande efeito da arte:
Ser grande ou pequenininha, mas se fazer inteira dentro e fora.
Porque a arte tá dentro e fora dos quadros, músicas, textos.
Ela gosta de ser desfeita e se recompor.
Porque a arte tá em poetizar.
Não precisa ser em prosa, nem em verso, nem em papel, nem com caneta.
Seja a poesia o que for.