terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Capítulo 1

Saiu de casa, bateu a porta e pegou a bicicleta encostada na grade da varanda.
Desceu as escadas e começou a pedalar pela rua.
Começou a pensar nas besteiras que tinha acabado de ouvir da sua mãe e sentiu a raiva subindo pelas paredes do seu corpo.
Sentiu sua pele esquentar e a amargura daqueles momentos arranhando a garganta.
Como podiam ser tão diferentes? Como a barriga que a guardou durante nove meses, os seios que a amamentaram, o colo que a ninou podiam trazer-lhe agora tanta repulsa?
Os olhos se encheram d'água e ver a avenida pela qual andava tornara-se mais difícil. Apertou então os olhos pra que as lágrimas saíssem do seu campo de visão.
Quando entrou na casa da mãe para poderem discutir sobre a decisão que havia tomado já sabia que seria difícil fazê-la entender porque estava agindo daquela maneira.
Sabia, desde o principío, que o momento em que fosse forçada a dar satisfações a sua mãe as coisas entre elas desandariam mais uma vez.
Aquela estabilidade na relação, tão dificil de ser alcançada, e tão impecavelmente mantida em manutenção durante esses anos seria abalada.
E provavelmente, dessa vez, não haveria forma de contornar a situação e reverter esse ciclo de discussões, ofensas, sofrimento e luto.
Tinha dito a si mesma que seria a última vez que daria satisfação a sua mãe sobre a sua vida.
O que ela não sabia era que esse não era o seu real desejo, mas foi exatamente assim que aconteceu e isso a encheu de remorso pelo resto da vida.
Quando José entrou na sua vida, muitas coisas mudaram. Na verdade, tudo mudou.
O que ela esperou da mãe não foi nada mais do que qualquer filha poderia esperar: O apoio, a amizade, as palavras de consolo, ou, minimamente, a compreensão que nunca veio.
Sua vida virou de pernas pro ar seguindo a cadeia de desgraças que foram caindo sobre a sua cabeça:
conhecer Manuel, se apaixonar por ele, descobrir toda a maldade que poderia haver dentro de um homem,
terminar um relacionamento conturbado, ser ameaçada de morte, ser espancada, ser estuprada por esse ex amor da sua vida.
Sua mãe nunca deixou de culpá-la por ter sido tão ingênua e leviana.
E durante muito tempo acreditou que a culpa do estrago irreparável que haviam causado na sua vida era unicamente dela.
Longos períodos se estenderam sobre ela e a sua única confidente era a culpa, que não a abandonava nem durante as noites, pra que pudesse descansar um pouco.
Muito pelo contrário, era exatamente nesses momentos em que a culpa entrava pelas brechas das portas e janelas, como um gás venenoso,
penetrava pelas suas narinas e intoxicava o mais íntimo de sua alma.
Sentia todo o peso da culpa comprimir seu corpo e esmagar seus ossos enquanto chorava, sozinha, pedindo perdão a Deus por algo que nem ela sabia como tinha feito.
Quando descobriu que estava grávida as coisas declinaram sensivelmente.
Tinha perdido o contato com todos os seus amigos enquanto namorava Manoel, pois ele a proibia de encontar com eles,
alegando que eram pessoas perdidas e interesseiras. O ciúme descabido de Manoel e o amor irremediável que ela o dedicava fizeram com que seu universo se restringisse aos dois.
Afastou-se até de sua família, já que Manoel sentia que não tinha a aprovação dentro da casa dos pais dela.
A gravidez veio como um soco na boca do estômago. Sentiu realmente que a sua barriga afundava infinitamente,
como se todo o seu corpo pudesse se voltar pra dentro dela e ela fosse potecialmente engolida por esse monstro que agora habitava seu ventre.
Percebia seu corpo apodrecido, já que a semente de Manoel florescia dentro dela.
Recorreu a um amigo de infância quando sentiu que suas forças se haviam esvaído por completo devido a todo o desgate emocional.
Precisava de algum apoio, uma bengala que a mentivesse erguida, ainda que escorada, pra enfrentar essa onda de concreto que lhe tirava toda a vida que ainda residia no seu corpo.
Seu amigo apresentou-lhe a namorada que conhecia um chá que garantia a secura das sementes idenvidamente plantadas.
A mulher explicou que ela deveria ferver 3 folhas da erva. Nem uma a mais, nem uma a menos. Em dois dias tudo estaria terminado.
Nesse dia, quando chegou em casa, sentou-se no chão de madeira corrida, iluminada por um raio de sol que invadia a sala por uma fresta.
Pegou uma xícara de porcelana, o bule fumegante e colocou, delicadamente, três folhas da erva dentro da xícara.
Contemplou as folhas secas durante alguns minutos e, num movimento tão lento, quase que em câmera lenta, retirou uma das folhas.
Despejou a água fervendo sobre as duas plantas que restavam e ficou observando a fumaça subindo concreta, branca, contra a luz que entrava, e depois se desfazendo facilmente.
Desmanchando-se sem deixar nenhum vestígio de existência. Pensou em toda a sua preocupação e desejou que tudo se transformasse naquela fumaça.
Como no ritual de um feitiço, proferiu seu desejo em voz alta para o chá. Depois bebeu o líquido marrom. Deus uns dois goles e cuspiu o resto.
O gosto de merda impregnou seu paladar, olfato. Parecia estender-se até o cérebro. Sentiu uma dor de cabeça absurda e apagou.
Acordou no dia seguinte com o raio de sol bem mais forte. Notou que havia passado a noite inteira caída na sala.
Depois percebeu que havia feito suas necessidades enquanto dormia. Arrancou a roupa e correu para o banheiro com a ânsia de vômito antecedendo a moléstia.
Tomou um banho, chorando descontroladamente. Tremendo. Sentia o medo presente em cada parte do seu corpo. Entrou em pânico.
Não sabia o que era aquela erva. Não fazia idéia do que aquilo seria capaz de causar ao seu corpo. Sentiu medo de morrer, ter um enfarte, um derrame, ficar retardada.
Não entendia como não tinha conseguido se segurar. Como seu corpo perdera a razão e se comportara como o de um bebê.
Ainda em pânico, ligou para o amigo, que veio às pressas com a namorada até sua casa.
A mulher a acalmou, dizendo que tudo aquilo era natural. Era o corpo dela expelindo tudo o que não prestava. Vômito, urina e fezes eram o que saíria primeiro e com maior facilidade.
Depois seria o feto que a deixaria, enfim.
Os dias se passaram. Os meses, os enjôos, os desejos e a barriga crescida acabaram entregando que os planos não funcionaram.
Quando foi ao médico, estava no 5º mês de gravidez, "graças a um milagre a criança estava bem!".
Parecia que o pesadelo se estendia numa linha de tempo agora indeterminada.
Na mesma hora sua memória entregou sua fraqueza. Três folhas. Nem uma a mais, nem uma a menos. Naquela tarde ela fez um chá usando duas folhas.
Não sei dizer se foi medo ou se alguma coisa dentro dela lutava contra aquilo.
O médico terminou de destrui-la quando confessou que alguma coisa parecia um pouco estranha com o seu bebê.
"Parece que a criança sofrerá de uma deficiência mental".
Não sei se sou capaz de narrar com riqueza de detalhes o decorrer dos fatos a partir dessa consulta.
E nem mesmo ela era capaz de se lembrar de tudo agora, pedalando e relembrando esses acontecimentos.
Sentia agora, sob o céu arroxeado, algumas gotas de chuva começando a cair.
Quanto mais rápido pedalava, mais forte sentia as gostas batendo contra o seu rosto.

domingo, 9 de janeiro de 2011

[ ]

Quando se olharam pela última vez nos olhos alguma coisa dentro dela disse que para que um novo encontro acontecesse isso levaria tempo.
Sentiu uma certeza, que quis duvidar, de que aquela conversa, como muitas outras que tiveram, descontraída e descompromissada, era uma despedida e
na hora de ir embora beijou-o. Colou seus lábios nos dele durante longos segundos e o beijo foi dolorido. Ela sabia que seria o último.
Saiu do carro e ficou repassando tudo o que haviam conversado. Tudo o que ele havia lhe dito. Repassou cada palavra, cada olhar, cada toque e intonação.
Fazia isso numa tentativa desesperada de registrar tudo o que tinha acabado de acontecer. Uma maneira de guardar tudo na memória exatamente como ocorreu.
Infelizmente sua memória já a traía e as lembranças se confundiam.
Sabia que estava pisando num terreno delicado. Abrir-se pra alguém não é um ato simples e muito menos simplório.
Com ele o caso não foi simplesmente de abrir-se. Desarmou-se por completo diante dele. Despiu-se de defesas.
Foi intensa, porém, leviana. Ainda não sei se foi um ato corajoso ou irresponsável. Mas estava, de fato, entregue.
Bocas ansiosas repetem como num mantra que a entrega e a crença são virtudes admiráveis,
mas sua mente desnorteada não pode considerar essas qualidades vantajosas para si.
Quando conversava com ele olhava-o dentro dos olhos como quem olha dentro da alma de alguém.
Absorvia-o numa doce rendição e esquecia filtros, armaduras ou suportes.
Aquilo parecia bastar. Sentia-se junto dele.
Toda aquela transmissão sustentava por trás dos olhos e na ponta da língua um pedido tolo e tímido: "Apenas não minta pra mim."
Se ele realizasse esse único desejo sentia que nada mais teria tanta importância. Qualquer coisa seria contornável.
Nunca deixou que seu pedido saísse de sua boca, mas pensava que ele compreenderia sua necessidade de ser sincera e de ouvir sinceridades.
Olhava-o e as palavras flutuavam na sua cabeça, passando pelos seus olhos como um letreiro: "Apenas não minta pra mim."
Era absolutamente verdadeira e seu pecado foi esperar que o que vinha dela viria do outro lado como numa via de mão-dupla.
Provavelmente foi aí que sua entrega deixou de ser corajosa e passou a ser uma negligência de si.
Pois amar sempre foi um ato que não requer absolutamente nada. É belo por si só. Mesmo só, é belo. É belo e só.
Mas abandonar-se frente a um amor não é uma atitude inteligente. A beleza esfria, ganhando contornos mais rigidos e coloração mais sóbria.
Deixou que o tempo fosse lhe passando a perna dia após dia, numa espera eterna.
Acreditando no que sua memória cruel lhe cedia: Vagas lembranças de raros momentos.
Acima de toda e qualquer recordação o que mantinha viva a vontade de arrastar os dias na esperança de que seu barco encontrasse terra firma era a vontade de querer bem.
O desejo de estar por perto. Era o carinho, a confiança dedicada. Era fechar os olhos e pular, sabendo que uma mão a seguraria.
Era sorrir por dentro ao saber dele, mesmo que não fosse por ele.
Era catar a concha mais bonita da praia para dar de presente, quando na verdade gostaria de dar um sorriso.
Era poder, apenas, dar as mãos.
O que aconteceu foi o despedaçar da flor. Foi o salto não sucedido da mão para poupar a queda.
Foi saber dele sempre de longe. Foi dar o sorriso e ouvir o silêncio.
Será que se tivesse feito seu pedido em voz alta alguma coisa teria mudado?
Será que o golpe teria sido ao menos mais gentil?
Deixou as lágrimas rolarem pelos olhos. Uma seguida da outra levando cada uma um pedacinho de sofrimento. Foram brotando e despencando do precipício.
No final sentiu-se vazia por dentro. Seca. Sentiu o nó na garganta e forçou o choro pra ver se havia ainda alguma coisa. Nada.
Então percebeu que faltava um pouco de delicadeza em todo esse ritual de tristeza e, por fim, amou-se.
Colocou uma música, deitou-se no chão fresco e ficou sentindo as batidas do seu próprio coração. Sentindo seu ventre subir e descer num movimento livre.
Foi sentindo-se cada vez mais fiel a ela mesma.
Entendendo a importância do momento fechou os olhos e ficou só consigo e ficou feliz por ter se achado num momento em que quase se perdeu.