terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Instinto

A lombriga rasteja sua carcaça robusta.
Todos sentem ojeriza quando o verme se arrasta,
mas a menina gosta do jeito que ele se encolhe e depois espreguiça.
Sente, então, como um verme e brinca de rastejar no chão.
Perto do solo o vai-e-vem da lombriga hipnotiza a menina
que se faz comprida esticando os dedinhos
e logo em seguida esconde o rosto, as mãos e o joelho como uma ostra.
Quer tocar a lombriga.
Quer chegar mais perto e segurá-la.
Quer, num ato de autoridade, esmagá-la entre as mãozinhas
e ordenar que seja menos lânguida, menos escorregadia, menos maleável e menos interessante.
Quer, em verdade, trocar de corpo com aquele ser incrível.
Quer tornar-se um verme.
Por inteligência ou instinto come a lombriga.
A menina rasteja sua carcaça robusta.
Todas as crianças gostam do jeito que ela se encolhe e depois espreguiça.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Um dia de aula

Encontro algumas nuvens dentro do meu café e começo a mordiscá-las entre um gole e outro.
Terminei a xícara e limpei o bigode de leite com uns pedaços de algodão que restavam no fundo.
Peguei o onibus e sentei sozinha, logo atrás do motorista.
Gosto de sentar na janela para o vento bater bem forte no meu rosto e para que eu possa sentir os meus cabelos voando desordenadamente.
Na segunda parada da viagem vejo, pelo canto dos olhos, um senhor sentar ao meu lado.
Era um senhor com uns fios de cabelo tão finos que pareciam uma delicada penugem de neve.
Ele era tão frágil e curvado que qualquer sopro parecia ser capaz de parti-lo em pedacinhos miudos ou levá-lo embora.
Fechei rapidamente a janela para que o vento não o incomodasse. Ele tossiu debilmente e depois sorriu.
- Você está com frio? Esse calor terrível a você vai ter coragem de me deixar sem uma brisa como refresco?
Hesitei um pouco e perguntei se o vento não estava muito forte para ele.
Ele fez que não com a cabeça. Abri novamente a janela, um pouco menos dessa vez.
Ele, como um bom cavalheiro, se apresentou para mim, falando num tom de voz tão baixo que, mesmo sentada ao seu lado, tive que me aproximar para escutá-lo.
- Me chamo Leonardo.
Contou-me que na semana seguinte completaria 90 anos. Estava na flor-da-idade.
Estava indo para antiga fábrica de sardinhas, onde poderia dar uma caminhada. Um dos prazeres que cultivava.
Na semana seguinte iria para Maricá, para o seu sítio. Ia sozinho.
- Meus filhos não me procuram não. Mas eu posso culpá-los? Eles tem as famílias deles. E eu vou comigo. Que é a melhor companhia que eu tenho.
Me falou das noites no sítio em que anda por uma estrada onde a única luz é a da lua.
Vai andando devargarzinho, ouvindo os barulinhos que vem da mata e sentindo seus músculos desgastados trabalhando, seus ossos cansados firmando seu corpo e seu coração antigo pulsando.
Pergunto se ele não tem medo de andar sozinho. Mas ele me garante que não há nada como estar consigo mesmo. Acredito plenamente.
Tiro os óculos escuros e sinto um contato maior.
- Que olhos bonitos! Você tem olhos de gato. Ou de peixes.
- Peixes?
- É. Peixes. Água. Mar.
Me conta de uma menina que ele namorou na juventude. Ela tinha os olhos de peixes, iguais aos meus. Foi o primeiro amor da vida dele.
Depois me contou de outros amores. De desamores. Contou das mulheres que cruzaram com ele. Mulheres direitas e mulheres da vida. Cada uma com uma história, um destino.
Contou da mulher com quem dividiu sua escova de dente e o resto de sua vida.
Dos filhos que tiveram juntos, da felicidade que ela lhe deu e do vazio que deixou quando se foi.
- Engraçado. Ela também tinha os olhos de peixes.
Sorri.
Ergueu os braços frágeis e apontou com os dedos de gravetos para a lua que era possivel de se ver, mesmo durante o dia.
- Sabe essa coisa bonita que ilumina as noites e as nossas idéias?
Fiz que sim.
- Ela ilumina também o nosso coração, sabia?
Declarou, por fim, que o que importava na vida ele já tinha.
- Não tô dizendo que não quero mais nada e que já podem me levar, não!
Deixou claro.
- Quero ir pro meu sítio, fazer longas caminhadas durante a noite e durante o dia. Quero encontrar uma mulher que queira dividir comigo os finais dos dias.
E isso não é pouco. Eu tive uma mulher que dividiu comigo todas as luas, crepúsculos, nasceres do sol e sol a pino.
Essa mulher dividiu comigo a vida dela e eu dei pra ela a minha. Meu coração ela levou.
Mas ainda tem um corpo aqui que precisa ver alguns pôr-do-sol e esse corpo precisa de companhia.
Me contou ainda que tem muitos planos, mesmo sem saber se será possível realizá-los.
- Não importa tanto se eu vou conseguir fazer tudo. Mas se eu quero então eu já comecei a conquistar.
Me aconselhou a continuar sorrindo porque assim eu conquistaria mundos inimagináveis. Me aconselhou a caminhar sempre porque faz bem pro corpo e pra mente.
Me aconselhou a me apaixonar muito e muitas vezes. Por vários ou pela mesma pessoa. Me aconselhou a ouvir os barulhos da mata e do meu corpo porque esses são os mais sábios e reveladores.
Me aconselhou a me cuidar, me proteger, não dá bola pra qualquer um porque tem muita gente má por aí.
Me aconselhou a manter os olhos de peixes sempre brilhantes e cheios de mar.
Me aconselhou a admirar a lua porque ela deixará minhas noites mais poéticas e meus dias mais bonitos.
Me aconselhou a andar sempre na minha própria companhia porque essa seria a pessoa mais sincera e companheira que eu poderia achar.
Por fim, me aconselhou a visitá-lo, porque ele já ia descer do ônibus, mas que achava muito aconselhavel termos outra conversa,
porque há muitas coisas ainda para serem aconselhadas, mesmo que eu não siga metade delas.
- Eu moro na rua do lado da igrejinha de São Sebastião. Minha casa é a de número 3. Passa lá. A gente pode conversar mais.
Desceu do ônibus e eu, infatilmente, corri para a janela para acenar.
Vi aquele homem com mãos de graveto gesticulando o número 3, de sua casa. Ficanda cada vez menor e mais frágil.
Senti um aperto no peito de tanta ternura.
Ainda tenho muito o que aprender e tenho um professor disposto a me ensinar.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Floresta

A névoa densa deixava o bosque branco. Tudo era muito fresco. A copa do carvalho, muito frondoso, misturava-se às outras árvores.
A luz entrava suavemente, sem agredir nenhum ser vivo. Sem interferir no fluxo do orvalho.
O acúmulo da garoa que caiu durante a noite fazia com que as folhas pendessem preguiçosamente.
O som silencioso dos seus cascos só podia ser ouvido pelos seres muito pequenos, pois o resto da floresta ainda dormia.
Desfilou por entre os antigos carvalhos, sentindo o ar gelado do início do dia passar por entre os fios da crina incrivelmente branca.
Postou-se ao lado da maior árvore do bosque. Diferente de todas as outras árvores, a ramada dessa entidade eram enormes flores e não folhagem.
A gigante vestia-se com pétalas de cores translúcidas que, ao serem penetradas pelos raios do sol, refletiam no chão um vitral.
O pelo claro do unicórnio refletia todas as cores. Achava-se numa calma ímpar, repousando sob a proteção da mãe da floresta.
O ar tinha um feitiço etéreo e claramente traços de um não-lugar. Uma não-superfície-terrestre.
Um espaço fora do espaço, com um céu recoberto de luas gigantes, tão próximas que ao esticar os braços a distância entre as pontas dos dedos e a superfície alva do astro se tornava mínima.
As cores desse terreno eram suaves.
Cada ser-vivo que brotava do chão tinha contornos difusos e reflexos harmoniosos, dando ainda mais a impressão de que se caminha em um tempo onírico.
Ouve-se, baixinho, a vida que habita em árvores milenares, pedras espaciais e solo fértil.
Milhares de vidas tecendo uma melodia de passos miúdos e bater de asas expressivo.
Uma joaninha escala a aste de um gerânio e oberva.
Uma libélula sobrevoa um jardim de violetas.
Uma lagartixa risonha move a cauda lentamente.
Uma formação de nuvens no alto de uma montanha cresce, ganhando dimensões extraordinárias.
O unicórnio repousa, uma joaninha orbserva, uma libélula lambe violetas, uma lagartixa sorri.
A floresta ganha aos poucos uma sombra magistral. Mansa.
A organização de cinzas no céu carrega vida e dissoluções.
As luas se viram de lado, retirando um pouco da sua beleza de prata para descanso.
Uma trovoada ressoa dentro do sonho e um dilúvio quimérico se joga do precipício.
Cristais vítreos despencam do céu e encharcam.
Todas as possibilidades se tornam paupáveis e tudo fica inebriado de acaso.
Os sentidos se aguçam e a tempestade realiza seu espetáculo.
Os seres não são espectadores ociosos. Participam.
Constroem a teia de divagações, ilusões, num terreno de não-lugar.
Onde os vitrais refletidos no chão são pétalas de flores, unicórnios flutuam entre carvalhos e uma joaninha observa.
Os satélites naturais são astros possíveis de se tocar. Tudo é muito fresco e a névoa densa deixa o bosque branco.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Poesia amarela

Olhei uma lista de cores amarelas
e pensei que eram todas diferentes entre elas.
Tanta tinta tosca que tava tudo trabalhoso.
As tintas amarelas eram, no final das contas,
todas amarelas, todas janelas.
Quando a gente quer fazer alguma arte
pensa em fazer pintura ou desenho.
Não sei porque a gente vê a arte
mais inteira nessa parte.
Talvez seja porque "ver" seja praxe.
E dentro dos quadros, pinturas e desenhos
a primeira coisa que se faz é olhar.
Sem se dar conta que a melhor parte da arte
tá em cada fragmento do ar.
Tá em ser o lugar, não importa onde, nem como.
A arte tá escondida um pouco debaixo das estantes
e dentro de potinhos pequenos.
Ela não se oculta porque quer,
mas o tal "olhar" (tão importante na hora de ver quadros pintados de amarelos variados)
fica abobado quando passa por estante e potinho.
Esquece de ver direito e a arte não fica evidente.
Aí o problema não é da arte ser menor,
é do olho ficar torto e olhar enviezado pro bonito que não se escancara.
Fica aquela coisa meio desbotada e grita-se: À ARTE! PERO, DONDÉ ESTÁS?
Quando a poesia começa a se escrever,
dentro ou fora do papel, a arte escondida fica em primeiro plano.
Porque a poesia é a arte inteirinha.
Mesmo que você não possa ver nem tocar.
Às vezes não dá nem pra ouvir.
Porque, às vezes, poesia não é escrita com papel e caneta.
Às vezes poesia não gosta de usar as palavras.
Se encontra no corpo da arte que paira no ar e cola.
Esse é um grande efeito da arte:
Ser grande ou pequenininha, mas se fazer inteira dentro e fora.
Porque a arte tá dentro e fora dos quadros, músicas, textos.
Ela gosta de ser desfeita e se recompor.
Porque a arte tá em poetizar.
Não precisa ser em prosa, nem em verso, nem em papel, nem com caneta.
Seja a poesia o que for.

sábado, 27 de novembro de 2010

Céu e Mar

O que divide o mar do céu é uma linha, que vivo tentando andar sobre.
Mas o que acontece é que ninguém consegue andar sobre as águas.
Tampouco, quando viro de cabeça pra baixo, consigo andar sobre o céu.
O fio divide os azuis hora de forma precisa, hora de forma difusa.
Todos os dias os meus passos são conflitantes. Vou me equilibrando, tentando enganar a gravidade, mas ela é sempre mais esperta do que eu.
Me puxa pelo pé, suspenso no ar.
Às vezes caio dentro d'água e me afogo no oceano. Outras vezes mergulho para dentro do firmamento e vou subindo como um balão de oxigênio.
Quando os meus olhos se abriram, e tudo estava azul, pude ver.
Vi com os olhos de quem só queria enxergar o azul, mas tinha um pequeno borrão no meio.
É dificil entender quando nos traímos mais. Se são os olhos que atrapalham, ou se é o músculo pulsante de dentro do peito que turva a visão.
Talvez eu possa ser honesta comigo e, pelo menos me perguntar, onde foi que me traí?
Foram os olhos. Foi a mancha no tecido azul. Foi o céu que me acolheu, suave e envolvente. Foi o mar que me sufocou, doce e ardente.
Todas as vezes que caio no mar ou no céu viro água. Viro ar. Me dissolvo.
Sou delicadamente absorvida, até que não exista mais diferença entre o que é sólido e o que só se pode sentir.
A grande delícia está nos momentos em que fui surpreendida pela força que não me deixa ser equilibrista e andar sobre um fio.
Dessa vez, quando caí, não sei bem se céu ou mar. Abri os olhos para me orientar. E, sem medo de me cegar, procurei pelo sol.
A manchinha escura se revelou, não sei se nos olhos ou dentro do peito, quando tentei voltar para o fio.
Ficou no meio da garganta, ou no meio da cabeça.
Outro sobressalto.
Entendi que não importava se era céu ou mar. Era aquilo.
Me acolheu, me envolveu, me beijou o rosto e fechei os olhos.
Não sei o que houve com o borrão. E nem comigo, toda azul.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Azul e vermelho cintilantes

Tudo no túnel entre o piso de madeira e o interior da cama é estático.
Nem uma brisa consegue penetrar as janelas de vidro e assoprar os papéis ou limpar a poeira que se instalou naquela caverna escura.
Nem um raio de luz adquire permissão pra desfazer aquele escuro frio. Tudo tem uma coloração desbotada e rude. E é pesado.
Cada objeto que estacionou naquele antro tem o aspecto de chumbo.
Debaixo de cama, misturado a papéis amassados, rascunhos de cartas, um cinzero e bicas de cigarro tem uma caixa, revestida de tecido azul e vermelho cintilantes.
As cores vibram, mesmo envoltas em poeira e teias de aranha. Como um coração pulsando.
Todo o universo habitado embaixo da cama não se passa no tempo. Fica ali pra sempre, do jeito que chegou. O ar não corre, as sombras não se movem, a luz não modifica.
Como um vacuo instalado. Um silêncio arrebatador.
A caixa vermelha e azul brilhando no fundo da cama irradia uma energia etérea.
Se algo pudesse se mover e se aproximar da caixa, sentiria uma força suave e delicada como um véu, mas com a potência de um imã, sugando seu corpo para junto dela.
Nada se move, nada conhece a autoridade desempenhada pela caixa debaixo da cama.
Se algo ou alguém conseguisse esticar o braço e tocar no tecido reluzente sentiria um ímpeto incontrolável de abrir a caixa.
Os olhos que a mirassem, não importa a coloração, refletiriam o interior do objeto deflorado.
Qualquer sentimento seria inundado pela essência que brotaria de dentro do recipiente.
Semi-aberto, tomando todo o cuidado pra que a substância não se perca, não evapore de maneira efêmera, como se todo aquele universo pudesse ser sugado por um buraco negro,
admira-se o que o tecido azul e vermelho cintilantes escondem.
Incrível. Absolutamente sublime.
Se alguma coisa, mesmo que por um milésimo de segundo, pudesse mover-se no interior daquela caverna escura e aproximar-se da caixa, um mundo de possibilidades estaria prestes a explodir.
Se ao menos por um momento, algo deslizasse, ou friccionasse um milímetro.
Nada se move. Nem mesmo o vento. Nem mesmo as sombras.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Relato de um sonho

Tinha um filme no meu sonho.
Uma câmera que captava cada gesto. Um palco, ao nível da platéia, onde uma peça de teatro era representada.
A câmera ficava posicionada e filmava todo o espetáculo, que posteriormente, se transformaria em um filme.
No meu sonho, era eu diretora e atriz principal. Protagonizava e intervia na cena a meu bel (des)prazer.
Vestida de mágico, adentrei o palco, usando uma cartola, um fraque e um bigode.
Contracenava com outro mágico, que usava os mesmos acessórios que eu.
Cada panorama no palco me enchia de prazer: Eu vivia um mágico, cheio de disfarces.
Cada olhar na câmera me preocupava. Era eu, além de diretora, fotógrafa.
Enquanto as falas iam saindo pela minha boca, cadenciadas pelo prazer do momento, fixei o olhar no meu companheiro de palco,
e me dei conta de que era qualquer pessoa que se parecia muito comigo.
Arrancou-me o bigode fajuto.
Corta. Vamos repetir.
Entro em cena, repito o diálogo e, no meio da interpretação:
Onde está o bigode da atriz? Ela entrou sem o bigode. Na primeira cena havia bigode. Vamos ter que repetir. Cadê a continuista?
Entro desesperada pela coxia, com todas as anotações do filme: Tem que colocar o bigode. Outro take.
Cadê a claquete? Vai você mesma.
Mas eu sou diretora de fotografia! Vá você...
Mas eu... Eu sou a diretora. Tsc.
Sequência 2, plano 6, take 2.
Largo a claquete no meio do caminho, corro, troco de roupa, coloco a cartola e o bigode.
A platéia parece feita figurantes. Todos fazendo comentários que em nada tinham a ver com a peça.
Começo a achar aquela peça esquisita. A história não se desenvolvia. Repetimos o mesmo plano incontáveis vezes.
Com bigode, sem bigode, com cartola, sem fraque, com claquete, sem continuista. Cadê a diretora de fotografia?
Foi dormir.
A platéia também já havia ido embora. Esbocei um sorriso.
Vamos refazer essa cena.
Entrei no palco com a câmera numa mão, a claquete debaixo do braço, o roteiro na outra mão. Vestida de fraque, cartola e bigode, recitei minhas falas:

- O que você achou da prosposta de Rasmussen?
- A garrafa centrífuga?
- Sim.
- O eixo vibrará demais para ser funcional, mas a idéia é inteligente. Acho que funcionaria com um suporte flexível que tivesse seu próprio eixo de rotação.

-Alguns anos antes, quando viu o exemplar da Annalen der Physik com seu primeiro artigo, ficou imitando um galo durante cinco minutos.-

- Estou progredindo.

Apenas sutil

Ao meu lado uma xícara. Do outro, um guardanapo.
Fiquei entre os dois, parada. Hora olhava pra um, hora olhava pro outro.
Ela, quietinha, mantinha uma postura elegantérrima. Ele não parecia se importar tanto com os modos e espreguiçava-se sobre a mesa.
Pelo menos estava dobrado, o que mostrava uma certa fineza.
Tudo em nome do respeito que tinha pela xícara. Não pelo convidado que sujaria a sua boca com o chá e depois o usaria para limpar-se.
Pelo visto não haveria convidados hoje. Apenas uma xícara posta, com pratinho e guardanapo. Depois chegou o resto.
Bule fumegante, açucareiro, um outro pratinho com alguns biscoitos.
Todos compondo a pequena mesa no centro do jardim.
Essa morosidade dos domingos sempre me deixa confortável.
Reflito o mundo todo de cabeça pra baixo e me sinto leve.
O chá de jasmim alivia o bule, aquece a xícara, e aromatiza o dia.
Merulho nos cristais do açucareiro, carrego o doce da vida e me afogo em água quente.
Rodopio, de ponta-cabeça. Duas batidinhas e retorno pro canto da mesa.
Ao lado da xícara e do guardanapo.
Esses domingos preguiçosos são deliciosos quando apreciados ao lado da graciosidade de uma xícara, da vadiagem do guardanapo,
do calor do chá, da doçura do açúcar e, claro, não deixando a humildade de lado, da sutileza de uma colher de chá.

domingo, 14 de novembro de 2010

Desassossego

acontece um embrulho dentro de mim. uma agonia suprimida.
vai se expandindo por dentro até que todo o resto fica comprimido.
o peito aperta um pouco - é o mais espremido - e fica sozinho.
sinto fome, mas não posso comer. sinto frio, mas falta o casaco pra me aquecer.
aí todo o interior fica melancólico. sussurra baixinho o que tá faltando e o resto do corpo grita essa falta.
os olhos entregam a ausência dos girassóis. ficam nublados. de um verde quase cinza.
os dedos tateando, perdidos, buscando um calor que não tem. ficam gelados, desorientados.
os pés tocam o chão, que também é frio. ficam com frio.
parece que o sol deu uma volta e esqueceu de voltar e as nuvens ficaram estáticas. pedregosas no céu.
deixam o dia branco e leitoso e o estômago fica com um buraco.
os lábios naufragos, suspirando, esperando.
o contorno foi ficando turvo, embaçado.
as mãos procurando outras mãos. não desistiram, apenas sossegaram.
uma hora o sol vem e esse embrulho dentro de mim se vai.
enquanto isso os olhos ficam anuviados. e os lábios esperançosos.
desacompanhar, às vezes, dói.

sábado, 6 de novembro de 2010

Enquanto existe a possibilidade de dar-se conta do que está na frente, fecham-se os olhos.
Se houver, ainda, a chance de se escutar o que tem pra ser dito, tampam-se os ouvidos.
Numa chuva fantasmagórica ouve-se uma risada distante.

O medo faz com que se queira correr pra qualquer direção, mas os galhos finos das árvores prendem-se na malha fina da roupa e na superfície da pele.
Arranham de leve e a tez branca ganha riscos vermelho vivo.
Rasga-se o vestido para limpar o ferimento, mas friccionar o pano sobre o corte arde até couro cabeludo. Apalpar os braços e coxas de maneira suave parece ser a solução.
Agora a ameaça da chuva reverte o ciclo.
As nuvens escuras deixam o céu arroxeado e os contornos das coisas vão se perdendo.
Abrem-se os olhos na espera da menor captação de imagem.
Aguçam-se os ouvidos para qualquer ruído.
Silêncio e escuridão.
Agarra-se às raízes das árvores. Estas, fortes, firmes no chão. Observa as nuvens formarem bombas que estouram e fazem seu corpo todo se contrair a cada estrondo.
As raízes resistentes garantem certa segurança. Unir-se a elas até virar um só talvez seja o caminho.
Cristais arredondados caem do céu incessantemente, como uma cortina translúcida que finge deixar ver as coisas.

Molha-se, resfria o corpo. Sabe que se largar os troncos das árvores a chuva vai arrastá-la. Não conseguirá parar, pela força da água. Então, tendo em vista o seu medo e a sua fragilidade, vai soltando vagarosamente, dedo após dedo, suas mãos da árvore.
Rola correnteza abaixo, num rio de leite. Sente os cabelos revirados, embolados. Bolhas correndo pelo rosto, colando nos cílios e entrando no nariz.
Os olhos piscando num leito de chuva. Enquanto o medo não vai embora, sente um frio na barriga e abre bem os braços.
Reconhece as duas emoções: vertigem e liberdade.
Sorri, confusa. Vira peixe e engole o rio. Abre as pernas e abraça a lua.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Acordei

Acordei no meio da noite com o coração espancando o meu peito. Meu ritmo cardíaco estava tão acelerado que imaginei que eu pudesse ter um enfarte.
Continuei deitada na cama, sem me mover, apenas escutando como a adrenalina podia ter um som tão alto no meio da madrugada.
Como se um tambor de escola de samba soasse descontroladamente dentro de mim.
Não só no meu peito, mas se expandindo até minhas mãos, meus dedos, minhas pernas e a minha cabeça, que latejava.
Coloquei as mãos sobre o peito e fiquei esperando que meu corpo fosse, aos poucos, se acalmando. Não me lembro de onde veio esse impulso emocinal.
Tentei me lembrar do que eu estava sonhando, mas não consegui trazer pro meu consciente nenhum pesadelo, ou vertigem.
Também não havia nenhum outro som no meio da noite que pudesse ter me feito acordar de supetão.
Meus nervos estavam à flor da pele e não existia nenhum motivo concreto pra que eu pudesse fazer o que costumo fazer comigo quando me encontro nessas situações:
Começar uma conversa longa e pausada comigo mesma, me explicando que não há motivo pra que eu me assuste. Eu simplesmente não conseguia me consolar.
Permaneci no escuro, deitada, com o coração pulando nas minhas mãos, que tentavam apertá-lo de volta pra dentro de mim.
Durante esse tempo que escorria vagarosamente, como um conta-gotas, fiquei olhando para o teto branco.
O teto todo branco, que se parecia com o meu pensamento.
Por um momento, confundi os dois, e já não sabia se eu olhava para o teto ou para o meu pensamento.
Era uma tela em branco, esperando por uma pincelada. Ou uma tela de projeção de cinema, esperando reproduzir o filme, que nem demorou muito pra começar.
Comecei a assistir a um filme ritmado pelas minhas batidas cardíacas, sempre aceleradas, onde eu caminhava. Não havia muitas coisas pra eu olhar nesse trajeto.
Aliás, tinha um milhão de coisas que se jogavam na minha frente, batiam contra o meu rosto, mas eu não as percebia e continuava uma caminhada acelerada em alguma direção duvidosa.
Eu andava e pisava em uns cacos de vidro, que faziam os meus pés descalços sangrarem, mas eu não sentia nenhuma dor.
Havia também muitos sons, vozes e música alta por onde eu passava, mas eu simplesmente não ouvia.
De repente eu parei em frente a um espelho. Fiquei me olhando, mas minha imagem não estava refletida. A única coisa que me mirava era uma máscara.
Fiquei com medo e quebrei o espelho. Olhei para o mosaico de imagens compostas no chão. Como fragmentos de uma caminhada que já não fazia mais tanto sentido.
Senti um gosto amargo na boca e me deitei ao lado de alguém que estava olhando para um teto branco, com as mãos sobre o seio, como se não quisesse deixar o coração escapulir.
Senti o medo dela. Demos as mãos e ficamos olhando para uma tela toda branca.
Cada vez mais branca, conforme o dia ia amanhecendo e a luz do sol ia penetrando a janela e clareando o teto.
Confundi o teto, a tela e o meu pensamento. Depois confundi o meu pensamento com o da mulher deitada ao meu lado.
Depois confundi nossas mãos e percebi que a única mão que eu apertava era a minha, que estava apertada contra o meu peito.
Senti que meu coração já não estava mais tão acelerado. Fechei os olhos e acho que consegui dormir.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

27 de setembro

Duas senhoras entram numa cabine de trem. Sentam-se frente-a-frente, mas ainda não se viram.
Uma ajeita alguma coisa dentro da bolsa enquanto a outra repousa o olhar sobre ela. De repente a reconhece. Leva um susto e sente um frio na barriga.
Quando a outra finalmente encontra os óculos e os coloca se fitam durante um longo período de uns 3 segundos. A senhora de óculos sorri. A outra sorri de volta.
Quantos anos se passaram. Dão as mãos e sentem a pele fina uma da outra. Os nódulos dos dedos muito mais aparentes do que 50 anos atrás.
A primeira a olhar tira de dentro da bolsa as fotos dos netos e mostra à outra.
Seus olhos se enchem de ternura. Retira seus familiares de dentro da bolsa também e os apresenta.
Tantos anos se passaram. No meio das fotos e das familias misturadas encontram uma foto das duas, cada uma com seus 17 anos.
Os cabelos castanhos e longos, os sorrisos largos, uma sentada num banco e a outra por trás, abraçando-a pelo pescoço.
Deram as mãos novamente pra sentir de novo o calorzinho daquela amizade. Algumas lágrimas ameaçam cair, mas elas dão um tapinha na mão uma da outra como quem diz "chorar não pode!".
Enquanto o trem corre em direção ao futuro das duas senhoras, aquele vagão corre contra o tempo e volta para um passado onde elas duas podem ser amigas novamente.
Um tempo onde iam para casa uma da outra, fechavam-se no quarto e passavam horas intermináveis conversando sobre festas, namorados, cabelo, amigos, medos, idéias, sonhos.
Desabafavam sobre perdas, sobre o mundo que as envolvia, sobre corações partidos, sobre sonhos, expectativas, desejos.
Num tempo onde não havia uma familia formada, não haviam casas que elas mesmas tinham contruido, cada uma em uma cidade diferente.
Não haviam dois maridos, filhos, nem uma mãe doente e dois pais falecidos.
Não havia um divórcio, não havia sofrimento, não havia um filho que foi morar no Japão, nem uma filha que virou budista.
Não havia distância física e muito menos espiritual.
O vagão inteiro ganhou o cheiro desse tempo, onde as tarde tinham cheiro do bolo que a mãe preparava para as duas e as manhãs tinham o cheiro do orvalho.
Antes do trem chegar na estação, elas não estavam mais naquela cabine. Tinham sido transportadas para uma outra época, onde aquela amizade podia ser recuperada.
Ali só restavam fotos de família, um óculos e um leve aroma de terra molhada. As gotas da chuva desenhando os trilhos do trem na janela de vidro.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Sintonizados

Ele adentra a sala, límpido.
Fala, observa. Os olhos atentos. As palavras precisas (às vezes nem tanto).
Circula o ambiente.
Ela já estava lá dentro quando ele entrou.
Também observa muito. Fala menos. As palavras menos precisas. Quase perdidas.
Ele fica atento e ouve ela falar. As palavras vão se perdendo, mas ele consegue recuperá-las.
Ela, muito agitada, quer falar de tudo de repente, quer pensar em tudo, quer fazer tudo e viver de tudo.
Ele acompanha os loopings daquela conversa sem sentido. Riem. Não sei se sabem de que, mas se entendem.
Ela derrama sobre ele algumas lágrimas e ele se comove. Não sabe mais se ela está feliz ou não. Tenta animá-la fazendo graça, e ela retriubui sorrindo.
Ele quer mais e sobe na cadeira. Faz um discuro, planta bananeira. Ela bate palmas e se diverte com o espetáculo.
Animado, ele sobe as escadas, corre e faz um circo para ela, que vibra.
Em meio a rodopios, escorrega e cai. Batendo com força no chão. Os dois param: a respiração dele e o coração dela.
A magia do memento se desfaz, como uma música parada no meio de um acorde.
Ela deita ao lado dele, fecha os olhos e lembra de Sheakspeare.
Deixa mais lágrimas rolarem. Ele abre os olhos, mas não revela o segredo. Continua silencioso sentindo um pouco do calor daquele sofrimento.
Depois sente pena dela e entrega o mistério, sorrindo com os olhos.
Ela fala um monte de palavras pouco precisas e ele vai recolhendo carinhosamente e arrumando-as.
Deitam-se lado a lado, fecham os olhos e escutam o pensamento um do outro. Atentos um ao outro. Cada vez menos precisos, cada vez mais conectados.

domingo, 26 de setembro de 2010

Pormenores

Talvez nenhum dos dois tivesse um objetivo. Em comum, não o tinham, mas talvez nem propositos opostos.
Caminhavam.
O relógico carregava todo o peso dos seus ponteiros para arrastar os minutos, enquanto o tempo do lado de fora corria com suas pernas compridas e ágeis.
No longo intervalo entre um número e outro de minuto que passava, uma corrente de acontecimentos se preparava para acontecer. Um efeito dominó.
Cruzaram-se.
Nesse momento uma nuvem de pássaros sobrevoa as suas cabeças, cobrindo o sol e fazendo uma enorme sombra. Atordoados, juntos aos milhares de pedestres,
olham para o céu procurando pela luz. Veem que o dia virou noite. Os dois olham seus relógios e percebem os ponteiros parados.
Ela deve ter uns 20 anos. Entra em uma cafeteria para esperar o eclipse passar. Não avisaram nada na metereologia.
Ele entra na cafeteria logo em seguida. Pede um café e vai se sentar próximo à porta. Sentam-se ao lado um do outro, por acaso.
Ela pede um café. Pegam as xícaras juntos, bebem juntos, colocam as xícaras no balcão. Suspiram juntos. Esperam a passagem do eclipse juntos.
Ainda não se viram e nem trocaram nenhuma palavra. Será que vão conseguir perceber o fio que unia um ao outro naquele momento?
Um fio tão invisível como o de uma teia de aranha.
Pediram a conta juntos, sem notar. Pagaram ao mesmo tempo, cada um para um balconista.
Levantou-se ela. Levantou-se ele. Andaram até a porta. O eclipse já estava passando.
Olharam ao mesmo tempo para os seus relógios, ainda parados.
Quando o primeiro raio de luz do sol consegui ultrapassar a penumbra, pode-se ver o bater das asas do último pássaro que cruzara o céu e fizera do dia noite.
Ninguém percebeu que eram pássaros. Todas as pessoas acreditaram que era apenas um eclipse.
Ela viu o último bater de asas. Ele ouviu o último farfalhar das penas. Na hora de sair pela porta do café, esbarram-se e notaram-se pela primeira vez.
Ela se desculpou rapidamente, ele também e depois saíram. Cada um foi para um lado. Olharam seus relógios e os ponteiros tinham voltado a se arrastar.
Aqueles pássaros eram momentos. Eram segundos, minutos, horas, dias, anos, séculos congelados.
Eles eram o tempo. No momento em que a revoada de pássaros cruzou a cidade, o tempo congelou para que mais momentos únicos pudessem ficar registrados.
Muitos podem pensar que esse milagre que não costuma acontecer sempre foi um desperdicio para eles dois. Estavam lado a lado, mas não conseguiram agarrar aquele momento.
Mas de alguma maneira, o momento agarrou os dois. O fio da teia de aranha, quase inivisível e extremamente resistente já tinha feito o seu trabalho.
Eles não sabiam, mas estavam presos. Se encontrariam de novo e, talvez, o tempo parasse mais uma vez para eles.
Enquanto o tempo corre com suas pernas esguias muitos momentos nos dão a chance de se congelarem. Ficarem cristalizados na nossa memória.
Momentos, pessoas, sentimentos e pássaros que às vezes fazem nossos ponteiros parar.
Muitas vezes não nos damos conta do encatamento. Outras vezes podemos ver ou ouvir o último farfalhar das asas.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Um conto e 1/2

Era um dia comum. Mais do que comum, era o típico dia que um assalariado como eu vai ao seu distinto local de trabalho para receber a misericórdia por mais um mês de agouro e logros chefiais e, como de costume, é esbofeteado com o sorriso maroto da secretária dizendo: “Houve um atraso nos salários. Vocês vão receber no final do mês que vem, junto com o próximo”.
Sai do escritório com os nervos a ponto de explodirem e voarem pelos ares junto com muito sangue e muitos outros fluidos que nem quero imaginar. Paciência, Alfredo, Astolfo, Alberto, Almir... Pouco importa. Paciência. E vou chegar em casa e não vai ter janta, e as crianças vão estar chorando, e a Teresa vai estar mal disposta. E não se faz sexo naquela casa já faz mais de mês. E já não se come carne no almoço já faz mais de mês. E se aquela obra não acabar até o fim do ano eu juro que infarto aqui mesmo!
Não fui pra casa. Liguei pra Teresa, mas ela não atendeu. Devia estar dando comida pras crianças e a TV devia estar ligada, ou então o rádio. Fui dar uma volta pra dar uma arejada na cabeça. Desci a Rio Branco, entrei na ..., virei mais uma rua e outra e já não me dava mais conta de quantas ruas eu tinha virado. Talvez estivesse perdido. Até hoje, desde que cheguei de Niterói no Rio de Janeiro, só sei andar pelas ruas quando vou contando quantas viro. Acabo entrando num beco onde vejo um pequeno prostíbulo. Entro sem fraquejar. Uma cerveja, por favor. Não, não. Me vê uma dose de vodka. Não. Me vê um uísque. Cacete, quanto tempo eu não vejo uma mulher nua. Acho que nem sei mais o que é uma vagina. Assisto às apresentações de dança. Uma, duas, três, oito, treze, vinte e duas. Já passava das duas da madrugada e das 18 doses de uísque quando sai daquela viela.
Se eu chegasse em casa àquela hora a Teresa não me deixava nem passar da porta. Resolvi pegar um táxi e dar uma olhada no mar. Quem sabe eu não passava na casa do meu pai. Um motorista fanho me levou até Santa Teresa contando a história inteira do bairro, que eu me esforcei de corpo e alma pra entender, mas só consegui registrar que o bonde foi inaugurado em 1872 ou 62. Meu pai tinha acabado de se mudar pra lá e eu já tinha prometido ajudá-lo com as mudanças. Não fui. Inventei qualquer coisa. Prometi jantar com ele no aniversário de morte da dona Carmen (mamãe). Tive uma dor de cabeça no dia, acabei remarcando pra semana seguinte e não fui e não liguei pra avisar. Marquei um jantar lá com todos os amigos dele, contratei cozinheira, gravei uns cd`s, organizei uma surpresa, e não fui porque o João passou mal no dia e a Teresa tava dando plantão.
Apertei a campainha e só depois me dei conta que já passava das 3:30. Sai rápido antes que meu pai se enfurecesse e saísse xingando o filho da puta que tava tocando a campainha à uma hora dessas na casa de um senhor de idade e família. Fui subindo até o Parque das Ruínas pra ver se assistia o sol nascer de lá. Como portão tava fechado pulei o muro e cai feito uma jaca do outro lado. Sentei numa mesa e ensaiei uns pensamentos que há muito tempo não tinha a oportunidade de evocá-los. Pensei na merda do emprego que eu tenho. Eu sempre soube que era uma merda, que não ia me fazer feliz. Eu nunca gostei de informática, eu nunca gostei de computador. Eu nem gosto de ficar sentado. Mas eu estava apaixonado pela Teresa. Aquelas ancas voluptuosas, aqueles olhos verde escuro. Tão escuro que só da pra saber que é verde se você olhar bem de perto. Me entreguei ao amor e a escravidão de uma vida medíocre. Dois filhos. Que pessoa, ou melhor, que casal que trabalha com informática, em sã consciência resolve ter dois filhos e morar no Rio de Janeiro? É querer comer arroz com feijão todos os dias e não ter nem uma carne no prato pra agradar a família. O dia já tava quase nascendo quando um guarda me chamou. Ei, psiu. Não pode ficar aqui dentro não! Tá fechado! Sabe ler não, ô infeliz?! Me desculpei e pulei o muro de volta. Cai e, dessa vez, ralei meu joelho. A Teresa deve ta acordada até agora me esperando. Coitada.
Mas o grand finalle das incertezas e maledicências da minha vida sempre foi o relacionamento que eu tive com meu pai. Acho que toda a minha frustração vem dessa catástrofe que foi a referência que esse homem era e ainda é pra mim. Esse machucado no joelho deve ter me remetido a uma catarse. De repente me vi com os olhos marejados e com um aperto no coração que fazia anos que eu não sentia. No inicio não identifiquei bem essa sensação e achei que tava tendo uma parada cardíaca. Fiquei mais nervoso ainda, mas depois percebi que era uma sensação muito bem conhecida por mim. Uma sensação de desamparo, abandono, solidão. Sentei na calçada e comecei a chorar como não fazia desde os meus sete anos. Chorei alto, solucei, funguei na camisa e me senti aquele menino de tantos episódios atrás, com medo, sozinho e sem mãe. Levantei determinado a bater na casa do meu pai e dizer tudo o que tava embargado na minha garganta há tantos anos. Subi aquela ladeira correndo e o sol já tinha nascido, mas não estava tão bonito como eu tinha imaginado. As nuvens encobriram a paisagem. Cheguei na porta dele arfando e a vontade de chorar já tinha ido embora. Bati com força e nada. Bati com mais força e uma voz rouca responde de muito longe que já vinha. Mal ele abriu a porta e o ataquei com um turbilhão de palavrões, insultos e maldições. Amaldiçoei todos os dias da existência dele. Gritei, fiz escândalo, acusei-o de ter matado minha mãe de desgosto. Gritei, quebrei um vaso, chutei a parede, xinguei. Gritei, quebrei o telefone na parede, chamei de inútil, de depravado, canalha, imundo. Gritei na cara dele que ele não valia nada e depois bati a porta com uma sensação de alivio misturada com rancor assim como o céu daquela quarta feira.
Os vizinhos todos olhavam pelas janelas daqueles casarões com o olhar muito curioso e estupefato. Enchi o peito e sai pisando confiante, virei à rua e me pus a chorar. Covardemente, avaliei a idade do meu pai (já passava dos setenta) e a minha imaturidade. Resolvi voltar e me desculpar. Chegando na rua dele vi uma porção de gente na porta chorando e tentando ver alguma coisa. Fui me espremendo entre aqueles corpos desconhecidos e afobados até conseguir entrar em casa e me deparar com uns olhos vidrados e uma testa banhada de sangue. Me curvei sobre aquele corpo que já fora tão imponente e que agora se aninhava perfeitamente nos meus braços sem sobrar nem faltar nada. Vedei seu ultimo olhar sobre mim e cantei uma canção de ninar que ele me embalava e que agora os papéis se haviam trocado. Sentei na sala com a calça já quente de sangue e esperei alguma alma caridosa me arrancar daquele tormento. Teresa chegou com uma cara muito aflta e se debulhou em lágrimas beijando minha boca, meu nariz, minha testa e os meus olhos. Afagando meus cabelos e dizendo: Tá tudo bem, querido. Ele já estava precisando descansar. Ele foi encontrar com a dona Carmen agora. Aqueles olhos estavam mais verdes do que nunca. Aquele homem no meu colo nunca me pareceu tão íntimo. Aquela vida nunca me pareceu tão distante da minha. Minha calça já começava a ficar fria e dura. Nunca senti um cheiro de ferro tão forte.

domingo, 15 de agosto de 2010

Afetos

Acordei com frio e percebi que a falta do seu corpo encostando no meu deixava um gelado insuportável.
Olhei depressa para o lado e quando vi o contorno do seu corpo na penumbra do quarto senti o alívio invadindo o meu peito.
Seu corpo moreno reluzia, completamente relaxado. Me aproximei de você e deixei o seu calor se apossar de mim, esquentando até dentro da alma.
Fiquei naquele nosso ninho, enroscado em você, até o começo do dia acabar com a nossa felicidade de se amar.
Levantei e fui até mesa do computador. Peguei as fotos que revelei ontem, do carnaval e fiquei adimirando seu sorriso.
Peguei uma em que você estava vestindo uma saia longa de hippie e tinha umas flores na cabeça. Guardei comigo. Organizei as outras e botei no envelope de volta.
Ontem, quando você disse que vinha, cancelei todos os meus compromissos:
Aula de dança, de alongamento, ida ao banco, acerto de contas do aluguel do apartamento.
Fui ao mercado comprar comida pra cozinhar pra você. Passei na feira e comprei as angélicas pra deixar a casa com o cheiro da sua flor preferida.
Fiz faxina na casa. Troquei o lençol da cama. O dia ficou pequenininho pra fazer tanta coisa.
Quando anoiteceu e já tava chegando a hora de você voltar do show eu tomei um bom banho, me perfumei e fiquei esperando você no quarto.
Depois te aguardei na sala, porque a ansiedade foi muita.
Quando a porta rompeu na sua entrada glamurosa senti que meu coração estalou no compasso do samba do bar aqui da rua.
Toda a sua volúpia de mulato, todo o seu gingado, aquele sorriso maravilhoso que me tira do eixo não me deixou nem fazer uma cerimônia,
um charme de quem não tá louco de desejo. Minhas pernas tremeram e você, todo suado e com a pele coberta de porpurina, me enlaçou e sussurrou no meu ouvido "Já tá excitado, nego?".
Depois de comer, dançar na sala até a música do bar parar e o nosso suor escorrer igual a uma torneira toda aberta,
beijar você até o seu batom sair e o nosso cheiro tomar conta do apartamento inteiro.
Depois de rasgar a sua roupa, pedir pra você vestir o figurino do espetáculo pra mim, rasgar o vestido do show e você ficar puto comigo.
Depois da cena que você fez dizendo que eu tinha que ser mais contido e depois me agarrar dizendo que você me amava de qualquer maneira.
Depois de faltar luz e a gente tomar banho à luz de velas, você ir pra cama comigo, você ameaçar ir embora pra frança, você me ver me rasgando em desalento,
chorando igual a uma viúva, e depois me pedir desculpas e me enxer de carinhos.
Depois de você transar comigo, foder comigo e fazer amor comigo, você dormiu. E aí que eu pude ter o meu momento racional.
Pensei na nossa vida conturbada, na agitação, nas perdas que tivemos ao longo do caminho, nas renúncias, nos desapegos, nos perrengues, nas alegrias
e fui construindo uma colcha de retalhos com sonhos e frustrações. Botei meu espírito aconchegado naqueles fragmentos de trajetória.
Ajeitei as incostâncias, que são o arrimo desse caminho torto, e as minhas urgências quando se trata de você e pude deitar de novo na cama.
No meio da ressaca de pensamentos, deixei a correnteza de incertezas e medos ir me levando cachoeira abaixo, num tumulto de sentimentos.
Fechei os olhos e deixei as ondas da melancolia da madrugada arrebentarem na minha cabeça. Senti a boca salgada da maresia, ou das lágrimas que me escorriam.
Igual a uma alga, me senti sendo jogado contra as rochas, até ser resgatado pela areia calma da praia. Me agarrei à sua tranquilidade e larguei os receios dentro d'água.
Você, com esse porte, virou o meu porto de atracação. Me fazendo cafuné pra melhorar meu dia, com esse seu humor volúvel, lendo Nelson Rodrigues pra mim,
transformou essa minha vida caótica numa paixão inculpável e devastadora.
Eu sei que você vai acordar, tomar café e ir embora. Mas enquanto você repousa ao meu lado eu me deixo desmanchar pelas suas manias e jeitos.
Esse negócio de amar faz da vida um turbilhão de afetos. Depois dizem que bicha é afetada e acham que tão ofendendo.
Eu posso até ser chamada de bicha. Afetada, graças a Deus, porque é de afetos que se vive.

sábado, 14 de agosto de 2010

Um conto triste

Podemos começar com uma sala grande e bem arejada. Branca, toda branca. Pra dar a impressão de ser maior ainda. Ou então de alguma outra cor clara. Mas seria melhor se fosse branca.
Tem uma janela grande bem centralizada com cortinas que vão até o chão. Azuis. As cortinas não tem outra opção. Um vento entra e balança elas, dando a impressão de ondas no mar.
Consegue visualizar?
Os dois entram e ele olha pela janela. Ela olha para as cortinas. Ele suspira e ela afirma com a cabeça, sorrindo de leve. Não se olham, mas se entendem. Vão comprar.
Uns anos depois a gente adentra a casa de novo. Ainda não determinei o tempo. As cortinas ainda são as mesmas e a sala ainda é branca. Ou a outra cor clara que a gente decidir.
Mas agora tem uns móveis. A casa agora é habitada. Tem que ser visível esse contraste de casa inabitada e habitada.
Tem um sofá grande na sala, uma estante de livros, uma cômoda com uns porta-retratos em cima. Tem que ter mais coisa, porque a sala é grande, lembra?
É pouco iluminada porque eles acharam que só a luz que entrava pela janela e o fato de ser um cômodo de cores claras já seria o suficiente. Não era.
Toda as vezes que ele ia ler na poltrona (esqueci de dizer que tinha uma poltrona, tipo aquelas típicas "poltrona do papai") ele reclamava da ausência de luz.
Ela dizia que era a idade. Se ele não teimasse em não usar óculos não reclamaria tanto. A sala tem uma porta que dá na cozinha. Fica bem de frente pra poltrona.
Ele observa a porta por cima do jornal. Não da pra ver a mulher, mas ele fica escutando os barulhos dela lavando a louça. Ela diz que eles precisam comprar logo a lava-louça.
Ele murmúra qualquer coisa e vai até a janela. Observa com o mesmo olhar que da primeira vez que estiveram na casa. É um olhar que ainda estou pensando também.
Não queria que fosse muito sonhador. É meio que de clausura. Como um pássaro na gaiola. A partir desse olhar todo mundo já vai entender mais ou menos a história.
Depois dessa pausa quero fazer um jogo de cenas. A gente vai lá pra frente e depois vai voltando nos fatos pra que dê pra entender o que passou.
Mostra ela sentada no mesmo sofá grande, bem de perto. Só mostra o rosto dela e o sofá, sem dar pra ver o lugar que o sofá tá. A boca dela contraída. Até que ela solta os lábios.
Como se estivesse prendendo a respiração durante um tempo longo e depois soltasse, ofegando um pouco. O sofá é muito aconchegante, mas quero a impressão de que ela não está nada confortável.
Ela fita o apartamento com olhos de vidro, apáticos. Fica sem expressão durante um tempo logo. Sem som! Só o rosto. Até que ela contrai levemente a testa.
E é então que ela mostra toda a dor. Nessa tênue expressão dá pra sentir a dor dela. Ela chora na garganta. Nos olhos não.
Levanta e vai até o banheiro e então percebemos que não é a casa dela. É um apartamente muito pequeno, apertado, com muitos móveis e de cores escuras.
Dentro do banheiro ela liga a torneira, joga água no rosto e se olhos no espelho, que está com a parte de baixo quebrada.
Contempla seu rosto durante um tempo. Os olhos cor de azeitona, meio amendoados, a boca de gato, a cicatriz na sobrancelha. Passa os dedos sobre a cicatriz.
Éuma mulher bonita, jovem. Joga muita água sobre o rosto, com certa violência e sem cuidados. Molhando também os cabelos curtos e a blusa branca.
Está sem sutian e os seios ficam a mostra, com a blusa colada. Pára e se olha de novo.
Há tanta angústia nos olhos que pode ter o som no fundo de uns carros passando, uma bozinas, sei lá.
Ela vai até a sala de novo e pega o telefone. Disca um número com as mãos tremendo, meio obcecada. Atende a voz de uma mulher mais velha e ela diz que tá precisando de um consolo.
Acho que ela era viciada em cocaína. A voz no telefone pergunta se ela tem certeza e ela acaba desligando, com um pouco de vergonha pela fraqueza, um pouco de raiva dela mesma e dele.
Pega no bolso um papel muito amassado e abre. As letras já estão meio manchadas de tanto que ela manuzeou o bilhete. Beija o bilhete com força. Depois lambe o papel e finalmente rasga com muita raiva.
Como numa crise. Amassa ele todo e enfia na boca. Mastiga o papel e engole. Até agora ela não chorou. Está completamente sufocada, percebe? Dá pra ver, né?
O telefone toca. Ela deixa tocar algumas vezes porque está engasgada com o papel e com o choro preso.
Atende e agora é a voz de um homem. Ele pergunta se ela sabe a diferença de uma bala de revólver e de uma bala de côco. Ela dá de ombros e ele diz que está na janela.
Ela vai até o parapeito levando o telefone preso entre a orelha e o ombro e o resto do telefone na mão, porque é um telefone com fio. Vê o amigo e sorri.
"Sobe." "Já vou, meu bem."
Ela desliga o telefone e vai até o corredor esperar por ele na porta do elevador porque está muito anciosa. Ficamos dentro do apartamento ouvindo o barulho dela batecando na parede.
Ouvindo o barulho do elevador chegar. Ouvindo o barulho de um abraço brusco. Ouvindo um grito de dor. Dor sofrida. Dor da alma. Dor dessas difíceis de sarar.
Ouve-se baixinho uma voz de homem: Eu sei, criança, eu sei. E ela responde no meio do choro tumultuado e sem cessar: Nunca vai parar de doer?
A voz masculina torna a ser ouvida: Sabe o que eu te trouxe? Bala de côco.
A câmera vai andando durante o diálogo e passa pelas caixas de papelão cheias de coisas: abajur, cobertores, uma caixa de costura, porta-retratos sem fotografias,
uma caixinha de primeiros socorros. Passa pelo sofá grande, pela poltrona, e pára na janela. Bem menor do que a outra, num canto da sala, meio fora de contexto.
As cortinas azuis penduradas, bem maiores do que a janela, ainda balançando com o vento. Focaliza na cortina. Barulho de ondas do mar quebrando. Corta.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Não há título

Ele fechou os olhos.
Ela abriu os braços.
Ele se escondeu.
Ela se olhou no espelho.
Ele trancou a porta.
Segunda pausa.
Ela abriu as pernas.
Ele se curvou.
Ela tomou os remédios.
Ele os jogou no lixo.
Ela ficou assustada.
Terceira pausa.
Ele fez um desenho.
Ela ficou confusa.
Ele chorou baixinho.
Ela tomou coragem.
Ele tomou uma decisão.
Quarta pausa.
Ela fez a barba.
Ele sentiu prazer.
Ela arrancou a roupa.
Ele teve dúvidas.
Ela teve dúvidas.
Quinta pausa.
Ele se viu.
Ela viu ele.
Ela se viu.
Ele viu ela.
Eles se viram.
Muitas pausas se fizeram.
Ela era ele.
Ele era ela.
Eles eram uma pessoa.
Uma pessoa só era ele e ela.

Um monte de gostos

Nossa! Foi muito engraçado! Foi muito engraçado mesmo!
Foi tão hilário... Que pensando bem agora já nem teve tanta graça.
Que coisa! Há um minuto atrás tinha sido bem engraçado mesmo, na minha cabeça.
Que desporpósito!
Há! Vai ver que foi por isso que foi tão divertido. Não teve intenção de ser risível.
Não, Não... Claro que teve. Foi uma piada. Toda piada tem a intenção de fazer rir. De divertir.
Sempre gostei de piadas. Mas nunca gostei de coisas que tem, a principio, uma intenção.
Meio paradoxal...
Acho que nunca gostei de piadas então.
Mas sempre gostei de rir. Porque todo mundo gosta de rir. Não existe uma pessoa na face da Terra que não goste de rir.
As pessoas que são mal-humoradas e dizem que não gostam de rir mentem.
Todo mundo mente.
Eu odeio mentira. Mas, às vezes, eu até que gosto delas, quando eu preciso.
Eu gosto e não gosto de um monte de coisas.
Talvez exista uma coisa que, independente de tudo, eu não goste sempre.
Talvez.
Morrer. Acho que eu não gosto nunca de morrer.
Eu odeio morrer no video-game e eu também odeio quando minhas margaridas morrem.
Eu odeio quando quando um bicho morre. A não ser o mosquito.
Mas aí também não fui eu que morri.
Mas também eu nunca morri de verdade.
Então não sei.
Existe uma coisa que eu gosto sempre, pelo menos: Rir.
Eu sempre gosto de rir.
Mesmo quando eu fico com falta de ar. Mesmo quando a barriga dói. Mesmo quando não pode.
Mesmo quando brigam comigo. Mesmo quando não teve graça...
A não ser quando eu fico com soluço.
Aí eu não gosto.
Eu gosto e não gosto de um monte de coisas.

domingo, 20 de junho de 2010

Três

Três pingos. Três incertezas. Três caminhos. Três tristezas.
Três incoerências. Três momentos. Três pontos. Três sofrimentos.
Três orações. Três medos. Três buscas. Três segredos.
Três verdades. Três mentiras. Três fios.

Uma trança.


Uma saída.


Uma esperança.


Uma.

sábado, 15 de maio de 2010

Epílogo

Essa semana pensei com tanto fervor na falta que a caneta sente das minhas mãos que senti pena da caneta, das minhas mãos e do papel, sempre em branco.
Enquanto as folhas do caderno ficam me fitando em silêncio penso que essa situação não pode continuar.
E, para a alegria da minha letra que começa a sair meio tronxa,
quase como uma criança começando a dar os primeiros passos e caindo no chão, as palavras vão se formando. Letra após letra, como no meu curso de espanhol, começo a escrever.
Antes era o medo. Perdi a intimidade com as palavras e pensei que todas elas me rejeitariam quando eu começasse a acariciá-las com a ponta da caneta.
No entanto, nosso reencontro foi como um cão ao reconhecer o dono, distante durante um longo inverno.