Era um dia comum. Mais do que comum, era o típico dia que um assalariado como eu vai ao seu distinto local de trabalho para receber a misericórdia por mais um mês de agouro e logros chefiais e, como de costume, é esbofeteado com o sorriso maroto da secretária dizendo: “Houve um atraso nos salários. Vocês vão receber no final do mês que vem, junto com o próximo”.
Sai do escritório com os nervos a ponto de explodirem e voarem pelos ares junto com muito sangue e muitos outros fluidos que nem quero imaginar. Paciência, Alfredo, Astolfo, Alberto, Almir... Pouco importa. Paciência. E vou chegar em casa e não vai ter janta, e as crianças vão estar chorando, e a Teresa vai estar mal disposta. E não se faz sexo naquela casa já faz mais de mês. E já não se come carne no almoço já faz mais de mês. E se aquela obra não acabar até o fim do ano eu juro que infarto aqui mesmo!
Não fui pra casa. Liguei pra Teresa, mas ela não atendeu. Devia estar dando comida pras crianças e a TV devia estar ligada, ou então o rádio. Fui dar uma volta pra dar uma arejada na cabeça. Desci a Rio Branco, entrei na ..., virei mais uma rua e outra e já não me dava mais conta de quantas ruas eu tinha virado. Talvez estivesse perdido. Até hoje, desde que cheguei de Niterói no Rio de Janeiro, só sei andar pelas ruas quando vou contando quantas viro. Acabo entrando num beco onde vejo um pequeno prostíbulo. Entro sem fraquejar. Uma cerveja, por favor. Não, não. Me vê uma dose de vodka. Não. Me vê um uísque. Cacete, quanto tempo eu não vejo uma mulher nua. Acho que nem sei mais o que é uma vagina. Assisto às apresentações de dança. Uma, duas, três, oito, treze, vinte e duas. Já passava das duas da madrugada e das 18 doses de uísque quando sai daquela viela.
Se eu chegasse em casa àquela hora a Teresa não me deixava nem passar da porta. Resolvi pegar um táxi e dar uma olhada no mar. Quem sabe eu não passava na casa do meu pai. Um motorista fanho me levou até Santa Teresa contando a história inteira do bairro, que eu me esforcei de corpo e alma pra entender, mas só consegui registrar que o bonde foi inaugurado em 1872 ou 62. Meu pai tinha acabado de se mudar pra lá e eu já tinha prometido ajudá-lo com as mudanças. Não fui. Inventei qualquer coisa. Prometi jantar com ele no aniversário de morte da dona Carmen (mamãe). Tive uma dor de cabeça no dia, acabei remarcando pra semana seguinte e não fui e não liguei pra avisar. Marquei um jantar lá com todos os amigos dele, contratei cozinheira, gravei uns cd`s, organizei uma surpresa, e não fui porque o João passou mal no dia e a Teresa tava dando plantão.
Apertei a campainha e só depois me dei conta que já passava das 3:30. Sai rápido antes que meu pai se enfurecesse e saísse xingando o filho da puta que tava tocando a campainha à uma hora dessas na casa de um senhor de idade e família. Fui subindo até o Parque das Ruínas pra ver se assistia o sol nascer de lá. Como portão tava fechado pulei o muro e cai feito uma jaca do outro lado. Sentei numa mesa e ensaiei uns pensamentos que há muito tempo não tinha a oportunidade de evocá-los. Pensei na merda do emprego que eu tenho. Eu sempre soube que era uma merda, que não ia me fazer feliz. Eu nunca gostei de informática, eu nunca gostei de computador. Eu nem gosto de ficar sentado. Mas eu estava apaixonado pela Teresa. Aquelas ancas voluptuosas, aqueles olhos verde escuro. Tão escuro que só da pra saber que é verde se você olhar bem de perto. Me entreguei ao amor e a escravidão de uma vida medíocre. Dois filhos. Que pessoa, ou melhor, que casal que trabalha com informática, em sã consciência resolve ter dois filhos e morar no Rio de Janeiro? É querer comer arroz com feijão todos os dias e não ter nem uma carne no prato pra agradar a família. O dia já tava quase nascendo quando um guarda me chamou. Ei, psiu. Não pode ficar aqui dentro não! Tá fechado! Sabe ler não, ô infeliz?! Me desculpei e pulei o muro de volta. Cai e, dessa vez, ralei meu joelho. A Teresa deve ta acordada até agora me esperando. Coitada.
Mas o grand finalle das incertezas e maledicências da minha vida sempre foi o relacionamento que eu tive com meu pai. Acho que toda a minha frustração vem dessa catástrofe que foi a referência que esse homem era e ainda é pra mim. Esse machucado no joelho deve ter me remetido a uma catarse. De repente me vi com os olhos marejados e com um aperto no coração que fazia anos que eu não sentia. No inicio não identifiquei bem essa sensação e achei que tava tendo uma parada cardíaca. Fiquei mais nervoso ainda, mas depois percebi que era uma sensação muito bem conhecida por mim. Uma sensação de desamparo, abandono, solidão. Sentei na calçada e comecei a chorar como não fazia desde os meus sete anos. Chorei alto, solucei, funguei na camisa e me senti aquele menino de tantos episódios atrás, com medo, sozinho e sem mãe. Levantei determinado a bater na casa do meu pai e dizer tudo o que tava embargado na minha garganta há tantos anos. Subi aquela ladeira correndo e o sol já tinha nascido, mas não estava tão bonito como eu tinha imaginado. As nuvens encobriram a paisagem. Cheguei na porta dele arfando e a vontade de chorar já tinha ido embora. Bati com força e nada. Bati com mais força e uma voz rouca responde de muito longe que já vinha. Mal ele abriu a porta e o ataquei com um turbilhão de palavrões, insultos e maldições. Amaldiçoei todos os dias da existência dele. Gritei, fiz escândalo, acusei-o de ter matado minha mãe de desgosto. Gritei, quebrei um vaso, chutei a parede, xinguei. Gritei, quebrei o telefone na parede, chamei de inútil, de depravado, canalha, imundo. Gritei na cara dele que ele não valia nada e depois bati a porta com uma sensação de alivio misturada com rancor assim como o céu daquela quarta feira.
Os vizinhos todos olhavam pelas janelas daqueles casarões com o olhar muito curioso e estupefato. Enchi o peito e sai pisando confiante, virei à rua e me pus a chorar. Covardemente, avaliei a idade do meu pai (já passava dos setenta) e a minha imaturidade. Resolvi voltar e me desculpar. Chegando na rua dele vi uma porção de gente na porta chorando e tentando ver alguma coisa. Fui me espremendo entre aqueles corpos desconhecidos e afobados até conseguir entrar em casa e me deparar com uns olhos vidrados e uma testa banhada de sangue. Me curvei sobre aquele corpo que já fora tão imponente e que agora se aninhava perfeitamente nos meus braços sem sobrar nem faltar nada. Vedei seu ultimo olhar sobre mim e cantei uma canção de ninar que ele me embalava e que agora os papéis se haviam trocado. Sentei na sala com a calça já quente de sangue e esperei alguma alma caridosa me arrancar daquele tormento. Teresa chegou com uma cara muito aflta e se debulhou em lágrimas beijando minha boca, meu nariz, minha testa e os meus olhos. Afagando meus cabelos e dizendo: Tá tudo bem, querido. Ele já estava precisando descansar. Ele foi encontrar com a dona Carmen agora. Aqueles olhos estavam mais verdes do que nunca. Aquele homem no meu colo nunca me pareceu tão íntimo. Aquela vida nunca me pareceu tão distante da minha. Minha calça já começava a ficar fria e dura. Nunca senti um cheiro de ferro tão forte.
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