segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Um conto e 1/2

Era um dia comum. Mais do que comum, era o típico dia que um assalariado como eu vai ao seu distinto local de trabalho para receber a misericórdia por mais um mês de agouro e logros chefiais e, como de costume, é esbofeteado com o sorriso maroto da secretária dizendo: “Houve um atraso nos salários. Vocês vão receber no final do mês que vem, junto com o próximo”.
Sai do escritório com os nervos a ponto de explodirem e voarem pelos ares junto com muito sangue e muitos outros fluidos que nem quero imaginar. Paciência, Alfredo, Astolfo, Alberto, Almir... Pouco importa. Paciência. E vou chegar em casa e não vai ter janta, e as crianças vão estar chorando, e a Teresa vai estar mal disposta. E não se faz sexo naquela casa já faz mais de mês. E já não se come carne no almoço já faz mais de mês. E se aquela obra não acabar até o fim do ano eu juro que infarto aqui mesmo!
Não fui pra casa. Liguei pra Teresa, mas ela não atendeu. Devia estar dando comida pras crianças e a TV devia estar ligada, ou então o rádio. Fui dar uma volta pra dar uma arejada na cabeça. Desci a Rio Branco, entrei na ..., virei mais uma rua e outra e já não me dava mais conta de quantas ruas eu tinha virado. Talvez estivesse perdido. Até hoje, desde que cheguei de Niterói no Rio de Janeiro, só sei andar pelas ruas quando vou contando quantas viro. Acabo entrando num beco onde vejo um pequeno prostíbulo. Entro sem fraquejar. Uma cerveja, por favor. Não, não. Me vê uma dose de vodka. Não. Me vê um uísque. Cacete, quanto tempo eu não vejo uma mulher nua. Acho que nem sei mais o que é uma vagina. Assisto às apresentações de dança. Uma, duas, três, oito, treze, vinte e duas. Já passava das duas da madrugada e das 18 doses de uísque quando sai daquela viela.
Se eu chegasse em casa àquela hora a Teresa não me deixava nem passar da porta. Resolvi pegar um táxi e dar uma olhada no mar. Quem sabe eu não passava na casa do meu pai. Um motorista fanho me levou até Santa Teresa contando a história inteira do bairro, que eu me esforcei de corpo e alma pra entender, mas só consegui registrar que o bonde foi inaugurado em 1872 ou 62. Meu pai tinha acabado de se mudar pra lá e eu já tinha prometido ajudá-lo com as mudanças. Não fui. Inventei qualquer coisa. Prometi jantar com ele no aniversário de morte da dona Carmen (mamãe). Tive uma dor de cabeça no dia, acabei remarcando pra semana seguinte e não fui e não liguei pra avisar. Marquei um jantar lá com todos os amigos dele, contratei cozinheira, gravei uns cd`s, organizei uma surpresa, e não fui porque o João passou mal no dia e a Teresa tava dando plantão.
Apertei a campainha e só depois me dei conta que já passava das 3:30. Sai rápido antes que meu pai se enfurecesse e saísse xingando o filho da puta que tava tocando a campainha à uma hora dessas na casa de um senhor de idade e família. Fui subindo até o Parque das Ruínas pra ver se assistia o sol nascer de lá. Como portão tava fechado pulei o muro e cai feito uma jaca do outro lado. Sentei numa mesa e ensaiei uns pensamentos que há muito tempo não tinha a oportunidade de evocá-los. Pensei na merda do emprego que eu tenho. Eu sempre soube que era uma merda, que não ia me fazer feliz. Eu nunca gostei de informática, eu nunca gostei de computador. Eu nem gosto de ficar sentado. Mas eu estava apaixonado pela Teresa. Aquelas ancas voluptuosas, aqueles olhos verde escuro. Tão escuro que só da pra saber que é verde se você olhar bem de perto. Me entreguei ao amor e a escravidão de uma vida medíocre. Dois filhos. Que pessoa, ou melhor, que casal que trabalha com informática, em sã consciência resolve ter dois filhos e morar no Rio de Janeiro? É querer comer arroz com feijão todos os dias e não ter nem uma carne no prato pra agradar a família. O dia já tava quase nascendo quando um guarda me chamou. Ei, psiu. Não pode ficar aqui dentro não! Tá fechado! Sabe ler não, ô infeliz?! Me desculpei e pulei o muro de volta. Cai e, dessa vez, ralei meu joelho. A Teresa deve ta acordada até agora me esperando. Coitada.
Mas o grand finalle das incertezas e maledicências da minha vida sempre foi o relacionamento que eu tive com meu pai. Acho que toda a minha frustração vem dessa catástrofe que foi a referência que esse homem era e ainda é pra mim. Esse machucado no joelho deve ter me remetido a uma catarse. De repente me vi com os olhos marejados e com um aperto no coração que fazia anos que eu não sentia. No inicio não identifiquei bem essa sensação e achei que tava tendo uma parada cardíaca. Fiquei mais nervoso ainda, mas depois percebi que era uma sensação muito bem conhecida por mim. Uma sensação de desamparo, abandono, solidão. Sentei na calçada e comecei a chorar como não fazia desde os meus sete anos. Chorei alto, solucei, funguei na camisa e me senti aquele menino de tantos episódios atrás, com medo, sozinho e sem mãe. Levantei determinado a bater na casa do meu pai e dizer tudo o que tava embargado na minha garganta há tantos anos. Subi aquela ladeira correndo e o sol já tinha nascido, mas não estava tão bonito como eu tinha imaginado. As nuvens encobriram a paisagem. Cheguei na porta dele arfando e a vontade de chorar já tinha ido embora. Bati com força e nada. Bati com mais força e uma voz rouca responde de muito longe que já vinha. Mal ele abriu a porta e o ataquei com um turbilhão de palavrões, insultos e maldições. Amaldiçoei todos os dias da existência dele. Gritei, fiz escândalo, acusei-o de ter matado minha mãe de desgosto. Gritei, quebrei um vaso, chutei a parede, xinguei. Gritei, quebrei o telefone na parede, chamei de inútil, de depravado, canalha, imundo. Gritei na cara dele que ele não valia nada e depois bati a porta com uma sensação de alivio misturada com rancor assim como o céu daquela quarta feira.
Os vizinhos todos olhavam pelas janelas daqueles casarões com o olhar muito curioso e estupefato. Enchi o peito e sai pisando confiante, virei à rua e me pus a chorar. Covardemente, avaliei a idade do meu pai (já passava dos setenta) e a minha imaturidade. Resolvi voltar e me desculpar. Chegando na rua dele vi uma porção de gente na porta chorando e tentando ver alguma coisa. Fui me espremendo entre aqueles corpos desconhecidos e afobados até conseguir entrar em casa e me deparar com uns olhos vidrados e uma testa banhada de sangue. Me curvei sobre aquele corpo que já fora tão imponente e que agora se aninhava perfeitamente nos meus braços sem sobrar nem faltar nada. Vedei seu ultimo olhar sobre mim e cantei uma canção de ninar que ele me embalava e que agora os papéis se haviam trocado. Sentei na sala com a calça já quente de sangue e esperei alguma alma caridosa me arrancar daquele tormento. Teresa chegou com uma cara muito aflta e se debulhou em lágrimas beijando minha boca, meu nariz, minha testa e os meus olhos. Afagando meus cabelos e dizendo: Tá tudo bem, querido. Ele já estava precisando descansar. Ele foi encontrar com a dona Carmen agora. Aqueles olhos estavam mais verdes do que nunca. Aquele homem no meu colo nunca me pareceu tão íntimo. Aquela vida nunca me pareceu tão distante da minha. Minha calça já começava a ficar fria e dura. Nunca senti um cheiro de ferro tão forte.

domingo, 15 de agosto de 2010

Afetos

Acordei com frio e percebi que a falta do seu corpo encostando no meu deixava um gelado insuportável.
Olhei depressa para o lado e quando vi o contorno do seu corpo na penumbra do quarto senti o alívio invadindo o meu peito.
Seu corpo moreno reluzia, completamente relaxado. Me aproximei de você e deixei o seu calor se apossar de mim, esquentando até dentro da alma.
Fiquei naquele nosso ninho, enroscado em você, até o começo do dia acabar com a nossa felicidade de se amar.
Levantei e fui até mesa do computador. Peguei as fotos que revelei ontem, do carnaval e fiquei adimirando seu sorriso.
Peguei uma em que você estava vestindo uma saia longa de hippie e tinha umas flores na cabeça. Guardei comigo. Organizei as outras e botei no envelope de volta.
Ontem, quando você disse que vinha, cancelei todos os meus compromissos:
Aula de dança, de alongamento, ida ao banco, acerto de contas do aluguel do apartamento.
Fui ao mercado comprar comida pra cozinhar pra você. Passei na feira e comprei as angélicas pra deixar a casa com o cheiro da sua flor preferida.
Fiz faxina na casa. Troquei o lençol da cama. O dia ficou pequenininho pra fazer tanta coisa.
Quando anoiteceu e já tava chegando a hora de você voltar do show eu tomei um bom banho, me perfumei e fiquei esperando você no quarto.
Depois te aguardei na sala, porque a ansiedade foi muita.
Quando a porta rompeu na sua entrada glamurosa senti que meu coração estalou no compasso do samba do bar aqui da rua.
Toda a sua volúpia de mulato, todo o seu gingado, aquele sorriso maravilhoso que me tira do eixo não me deixou nem fazer uma cerimônia,
um charme de quem não tá louco de desejo. Minhas pernas tremeram e você, todo suado e com a pele coberta de porpurina, me enlaçou e sussurrou no meu ouvido "Já tá excitado, nego?".
Depois de comer, dançar na sala até a música do bar parar e o nosso suor escorrer igual a uma torneira toda aberta,
beijar você até o seu batom sair e o nosso cheiro tomar conta do apartamento inteiro.
Depois de rasgar a sua roupa, pedir pra você vestir o figurino do espetáculo pra mim, rasgar o vestido do show e você ficar puto comigo.
Depois da cena que você fez dizendo que eu tinha que ser mais contido e depois me agarrar dizendo que você me amava de qualquer maneira.
Depois de faltar luz e a gente tomar banho à luz de velas, você ir pra cama comigo, você ameaçar ir embora pra frança, você me ver me rasgando em desalento,
chorando igual a uma viúva, e depois me pedir desculpas e me enxer de carinhos.
Depois de você transar comigo, foder comigo e fazer amor comigo, você dormiu. E aí que eu pude ter o meu momento racional.
Pensei na nossa vida conturbada, na agitação, nas perdas que tivemos ao longo do caminho, nas renúncias, nos desapegos, nos perrengues, nas alegrias
e fui construindo uma colcha de retalhos com sonhos e frustrações. Botei meu espírito aconchegado naqueles fragmentos de trajetória.
Ajeitei as incostâncias, que são o arrimo desse caminho torto, e as minhas urgências quando se trata de você e pude deitar de novo na cama.
No meio da ressaca de pensamentos, deixei a correnteza de incertezas e medos ir me levando cachoeira abaixo, num tumulto de sentimentos.
Fechei os olhos e deixei as ondas da melancolia da madrugada arrebentarem na minha cabeça. Senti a boca salgada da maresia, ou das lágrimas que me escorriam.
Igual a uma alga, me senti sendo jogado contra as rochas, até ser resgatado pela areia calma da praia. Me agarrei à sua tranquilidade e larguei os receios dentro d'água.
Você, com esse porte, virou o meu porto de atracação. Me fazendo cafuné pra melhorar meu dia, com esse seu humor volúvel, lendo Nelson Rodrigues pra mim,
transformou essa minha vida caótica numa paixão inculpável e devastadora.
Eu sei que você vai acordar, tomar café e ir embora. Mas enquanto você repousa ao meu lado eu me deixo desmanchar pelas suas manias e jeitos.
Esse negócio de amar faz da vida um turbilhão de afetos. Depois dizem que bicha é afetada e acham que tão ofendendo.
Eu posso até ser chamada de bicha. Afetada, graças a Deus, porque é de afetos que se vive.

sábado, 14 de agosto de 2010

Um conto triste

Podemos começar com uma sala grande e bem arejada. Branca, toda branca. Pra dar a impressão de ser maior ainda. Ou então de alguma outra cor clara. Mas seria melhor se fosse branca.
Tem uma janela grande bem centralizada com cortinas que vão até o chão. Azuis. As cortinas não tem outra opção. Um vento entra e balança elas, dando a impressão de ondas no mar.
Consegue visualizar?
Os dois entram e ele olha pela janela. Ela olha para as cortinas. Ele suspira e ela afirma com a cabeça, sorrindo de leve. Não se olham, mas se entendem. Vão comprar.
Uns anos depois a gente adentra a casa de novo. Ainda não determinei o tempo. As cortinas ainda são as mesmas e a sala ainda é branca. Ou a outra cor clara que a gente decidir.
Mas agora tem uns móveis. A casa agora é habitada. Tem que ser visível esse contraste de casa inabitada e habitada.
Tem um sofá grande na sala, uma estante de livros, uma cômoda com uns porta-retratos em cima. Tem que ter mais coisa, porque a sala é grande, lembra?
É pouco iluminada porque eles acharam que só a luz que entrava pela janela e o fato de ser um cômodo de cores claras já seria o suficiente. Não era.
Toda as vezes que ele ia ler na poltrona (esqueci de dizer que tinha uma poltrona, tipo aquelas típicas "poltrona do papai") ele reclamava da ausência de luz.
Ela dizia que era a idade. Se ele não teimasse em não usar óculos não reclamaria tanto. A sala tem uma porta que dá na cozinha. Fica bem de frente pra poltrona.
Ele observa a porta por cima do jornal. Não da pra ver a mulher, mas ele fica escutando os barulhos dela lavando a louça. Ela diz que eles precisam comprar logo a lava-louça.
Ele murmúra qualquer coisa e vai até a janela. Observa com o mesmo olhar que da primeira vez que estiveram na casa. É um olhar que ainda estou pensando também.
Não queria que fosse muito sonhador. É meio que de clausura. Como um pássaro na gaiola. A partir desse olhar todo mundo já vai entender mais ou menos a história.
Depois dessa pausa quero fazer um jogo de cenas. A gente vai lá pra frente e depois vai voltando nos fatos pra que dê pra entender o que passou.
Mostra ela sentada no mesmo sofá grande, bem de perto. Só mostra o rosto dela e o sofá, sem dar pra ver o lugar que o sofá tá. A boca dela contraída. Até que ela solta os lábios.
Como se estivesse prendendo a respiração durante um tempo longo e depois soltasse, ofegando um pouco. O sofá é muito aconchegante, mas quero a impressão de que ela não está nada confortável.
Ela fita o apartamento com olhos de vidro, apáticos. Fica sem expressão durante um tempo logo. Sem som! Só o rosto. Até que ela contrai levemente a testa.
E é então que ela mostra toda a dor. Nessa tênue expressão dá pra sentir a dor dela. Ela chora na garganta. Nos olhos não.
Levanta e vai até o banheiro e então percebemos que não é a casa dela. É um apartamente muito pequeno, apertado, com muitos móveis e de cores escuras.
Dentro do banheiro ela liga a torneira, joga água no rosto e se olhos no espelho, que está com a parte de baixo quebrada.
Contempla seu rosto durante um tempo. Os olhos cor de azeitona, meio amendoados, a boca de gato, a cicatriz na sobrancelha. Passa os dedos sobre a cicatriz.
Éuma mulher bonita, jovem. Joga muita água sobre o rosto, com certa violência e sem cuidados. Molhando também os cabelos curtos e a blusa branca.
Está sem sutian e os seios ficam a mostra, com a blusa colada. Pára e se olha de novo.
Há tanta angústia nos olhos que pode ter o som no fundo de uns carros passando, uma bozinas, sei lá.
Ela vai até a sala de novo e pega o telefone. Disca um número com as mãos tremendo, meio obcecada. Atende a voz de uma mulher mais velha e ela diz que tá precisando de um consolo.
Acho que ela era viciada em cocaína. A voz no telefone pergunta se ela tem certeza e ela acaba desligando, com um pouco de vergonha pela fraqueza, um pouco de raiva dela mesma e dele.
Pega no bolso um papel muito amassado e abre. As letras já estão meio manchadas de tanto que ela manuzeou o bilhete. Beija o bilhete com força. Depois lambe o papel e finalmente rasga com muita raiva.
Como numa crise. Amassa ele todo e enfia na boca. Mastiga o papel e engole. Até agora ela não chorou. Está completamente sufocada, percebe? Dá pra ver, né?
O telefone toca. Ela deixa tocar algumas vezes porque está engasgada com o papel e com o choro preso.
Atende e agora é a voz de um homem. Ele pergunta se ela sabe a diferença de uma bala de revólver e de uma bala de côco. Ela dá de ombros e ele diz que está na janela.
Ela vai até o parapeito levando o telefone preso entre a orelha e o ombro e o resto do telefone na mão, porque é um telefone com fio. Vê o amigo e sorri.
"Sobe." "Já vou, meu bem."
Ela desliga o telefone e vai até o corredor esperar por ele na porta do elevador porque está muito anciosa. Ficamos dentro do apartamento ouvindo o barulho dela batecando na parede.
Ouvindo o barulho do elevador chegar. Ouvindo o barulho de um abraço brusco. Ouvindo um grito de dor. Dor sofrida. Dor da alma. Dor dessas difíceis de sarar.
Ouve-se baixinho uma voz de homem: Eu sei, criança, eu sei. E ela responde no meio do choro tumultuado e sem cessar: Nunca vai parar de doer?
A voz masculina torna a ser ouvida: Sabe o que eu te trouxe? Bala de côco.
A câmera vai andando durante o diálogo e passa pelas caixas de papelão cheias de coisas: abajur, cobertores, uma caixa de costura, porta-retratos sem fotografias,
uma caixinha de primeiros socorros. Passa pelo sofá grande, pela poltrona, e pára na janela. Bem menor do que a outra, num canto da sala, meio fora de contexto.
As cortinas azuis penduradas, bem maiores do que a janela, ainda balançando com o vento. Focaliza na cortina. Barulho de ondas do mar quebrando. Corta.