terça-feira, 6 de setembro de 2011

Tempo

Os ponteiros do relógio jamais poderiam soar mais delicados do que o desabar de um martelo.O tempo passava arrastado, nesse planeta. Os segundos costumavam agarrar no fundo do relógio como pregos afiados que, conforme se moviam,abriam uma fissura, como um terremoto abre uma cratera na terra. Foi um período dificil para eles, que costumavam a andar lado a lado. Não havia nenhuma promessa. Não costumavam conversar muito e a troca de palavras que faziam se restringia a perguntar se sentiam alguma dor e se era possível continuar a caminhar. O que os mantinha unidos, de fato, era a caminhada. Nada mais. Por onde passavam deixavam uma certa curiosidade. Um desejo de se conhecer um pouco mais a respeito deles e dos passos por todos os cantos que haviam andado.Um dia resolveram correr. Foi algo acordado tacitamente. Bastou que um sentisse que os passos do outro começavam a se acelerar para que este acelerasse também os seus. E como numa tentativa de estar sempre lado a lado começaram a mover as pernas muito rapidamente e, quando perceberam, lançavam seus pés para frente como gazelas num imenso cerrado.O impacto dos pés no chão agora eram mais velozes do que os segundos que davam voltas no relógio. Seus passos eram mais rápidos do que o próprio tempo e conforme avaçavam sentiam que deixavam pelo caminho uma borra de passado, que descolava de seus calcanhares como um pouco de lama que tivesse grudado. Nesse momento eles não perteram ao planeta que tremia com o ressoar de cada badalada do relógio. Eles passavam pelo mundo e, nesse momento (como se fosse possível) tinham ainda menos relação com o universo. Faziam parte apenas da brisa que batia contra os rostos e balançava os cabelos. Eram como pequenos gravetos carregados por um pé de vento, dançando pelos ares. Seus músculos tornavam-se visivelmente mais rídidos, mas a sensação era de leveza absoluta. Quanto mais corriam mais sentiam que podiam correr por cada vez mais tempo. Achavam que poderiam flutuar durante um tempo indeterminável e que, um dia, poderiam não mais tocar o solo e apenas fazer movimentos para frente e para trás que, assim como as asas de um pássaro, os fariam alçar vôo. Se desprenderiam por completo dos delicados fios de lã que ainda prendiam seus corpos à terra.Se esses fios fossem rompidos poderiam subir como balões translúcidos. Como flores levadas pela correnteza de um rio de águas escuras. Esse tempo quase se tornou mais fácil para eles. Por breves momentos acreditaram que era possível atravessar o tempo sem que os ponteiros os antigisse com o peso de marretas.Nesses sopros de irrealidade olharam-se pelo canto dos olhos. Quase se viram. Nunca haviam se olhado de frente. Apenas sentiam a presença um do outro ao lado e às vezes trocavam algumas palavras. Não havia promessas.Seus cantos de olhos quase se cruzaram, mas talvez, se virassem as cabeças, descompassariam suas passadas e perderiam o ritmo.Acharam, por alguns instantes, que realmente haviam se visto. Mas não com certeza. Continuaram a correr e os segundos a abrirem crateras no chão em que mal tocavam com seus pés de pássaros.

domingo, 26 de junho de 2011

Gotejar Nocivo

A maneira como aquela maldita gota teimava em desabar do teto e perfurar o chão já ia me fazer perder o juízo. A única coisa que eu precisava era pôr termo àquele quadro. As cores iam bem, as idéias pioneiras já se haviam desenvolvido com fluidez até o estágio em que se encontrava o meu ofício. Mas aquela goteira estava a me fazer de parvo. Não havia caneca, toalha, pinico que cessasse o gotejar inexorável do meu desfalecido telhado. A encantadora pastorinha de minhas pinceladas parecia se afligir com o estrépito das gotinhas no assoalho, o que corroborava com o meu aborrecimento.
Minhas pinturas produzem esse efeito em mim, integramos-nos numa sintonia de sentimentalidade onde o que elas experimentam é parte do meu reconhecimento de mundo. Transfiro lhes minhas mágoas com as cores de plúmbeo e beterraba, terra e ocre, dando lhes um aspecto de frieza, dor e melancolia. Uso muito a cor negra também, que ratifica o meu lado obscuro e mórbido, minha fase lua nova. Quando me sinto tomado de ódio, uso do vermelho sangue, expressando todas as mortes, que seria capaz de fazer com minhas próprias mãos, nas telas de juta. Quando me sinto alegre também pinto, mas a vivacidade que há em meus pensamentos maléficos não se pode comparar aos meus raros momentos harmoniosos.
Maldita goteira. Torturando meus miolos e minhas genialidades com seu bulício calafriliante. Verde inglês, azul ultramar, violeta permanente e azul cerúleo... Ou azul petróleo? Golpeando minha própria cabeça, me rendi ao ser detestável e esdrúxulo que era aquela poça formada ao lado do meu criado-mudo. Peguei minha tela e minhas tintas e a minha amável pastora com feições de desnorteio e fui para o jardim. Verdade que chovia, mas antes o estrondo de milhares de gotas se sobrepondo do que um único cair de água que insistiu em me chamar mais atenção do que a minha ocupação.
Finalizei minha guardadora de gados com leves pinceladas de marrom van Dick, terra de sombra natural, amarelo nápoles e branco de titânio. Ela se parecia levemente com A Bebedora de Absinto, de Picasso, com suas marcas de expressão e de velhice precoce. A minha dama, porém, apesar de solitária como a outra, se encontrava em um ambiente um pouco mais iluminado, embora chuvoso, como no dia em que a criei.
A goteira foi consertada, enfim. Minhas canecas puderam voltar a exercer suas verdadeiras funções de me servirem o extemporâneo chá com canela de minhas tardes exíguas. E meus pinicos, até então pérfidos auxiliadores, me servem como nada.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Intimista

Tão para dentro, tão para dentro que, de repente, entra tanto que vira do avesso.
E aí fica tão exposto que até as moscas podem repousar sobre as suas vísceras.

sábado, 30 de abril de 2011

Facetas

Um grupo de cristãos, sentado em círculo, ouve um relegioso falar sobre Deus. Dão as mãoes e fecham os olhos.
No restaurante ao lado o filho do dono ensaiava sax para a apresentação de natal, com as luzes parcialmente apagadas.
Num apartamento do prédio mais baixo da rua um homem e uma mulher, de aproximadamente 25 anos, dançam juntos, sem música
e no apartamento ao lado três amigas comem brigadeiro e fazem confissões amorosas.
Numa sala um professor ensina matemática ao seu aluno preferido. Seus olhos transbordam de ternura enquanto o menino desenvolve as questões.
Próximo dali uma mulher de 43 anos amamenta seu primeiro filho, concebido por inseminação artificial e a atmosfera do quarto é um bafo quente e alaranjado de aconchegante amor.
Na cidade vizinha dois adultos dormem numa cama de casal e a filha de 6 anos pede para se deitar com eles pois acaba de ter um pesadelo.
O pai se levanta, vai até o quarto da menina e conta uma história sobre princesas e naves espaciais. Ela adormece, sorrindo.
Um casal de amantes faz sexo violentamente, como se o mundo fosse terminar naquele orgasmo.
Outro casal de amantes faz sexo muito lentamente, prolongando aquele ato para toda a eternidade. Transformando o mínimo espaço entre aqueles dois corpos em espaço nenhum.
Apertando os seus corpos um contra o outro com tanta intensidade que entram um no outro e transformam-se em um só.
Duas irmãs assistem juntas a um filme de terror. De repente falta luz e elas gritam de pavor. Depois riem uma da outra.
O terceiro irmão chega sorrateiramente e as surpreende com uma máscara. Elas gritam novamente e novamente riem.
Os três acendem uma vela e brincam de fazer sombras durante toda a madrugada.
Em outra casa um menino confessa para a irmã que usou cocaína. Ela dá um tapa em seu rosto. Sente raiva dele, que abaixa os olhos enrubrecendo.
Abraça-o vigorosamente, sentindo pelo irmão uma compaixão sem fim e os dois choram.
Um grupo de amigos senta em uma mesa de bar para conversar e relembrar acontecimentos, bebedeiras, antigos amores, política e poesia. Nenhum tem menos de 65 anos.
Na mesa ao lado três jovens reconhecem os poetas famosos. Os dois estudantes de letras e o estudante de direito mal podem acreditar que tem seus maiores exemplos
a menos de dois metros deles e, numa angústia exagerada, numa timidez coberta de excitação, pulam até a mesa dos sete senhores, se apresentam - seus maiores discipulos -
e pedem para que eles recitassem uma poesia, estrofe, versos soltos, palavras perdidas. Os poetas antigos se comovem com tamanha admiração. Pedem para unirem-se a eles.
Os jovens pensam que podem morrer naquele momento, que nada mais importaria. Os 10 poetas reunidos conversam sobre tudo. Falam, sobretudo e apaixonadamente sobre poesia.
Todos poderiam morrer naquele momento pois nada mais importaria.
Depois do culto religioso o grupo se despede. Um homem de 30 anos leva o pai para casa. O pai sofre de alzheimer e o filho o leva três vezes por semana a um culto religioso
para conhecer as palavras de deus e para sentirem-se reconfortados por elas. Depois, no fim do dia, leva-o a praia para que o dourado da tarde embeleze seu dia,
o cair da noite lhes refresque a alma, o azul do mar adoce seus olhos e o calor da areia lhes acaricie os pés.
O filho pinta o pôr-do-sol enquanto o pai brinca como criança nas pequenas ondas que lambem a praia. Voltam para casa de mãos dadas, com o afeto irradiando por todo o bairro.
O homem que sofre de alzheimer é deixado na clínica todas as noites com seus amigos de buraco e com enfermeiras amáveis por seu adorado filho.
Na manhã seguinte é arrancado de sua cama por mulheres rudes, vestidas de branco e por um homem barbado, magro e de enormes olhos castanhos, que afirma ser seu filho,
mas que ele tem certeza (certeza!) de que nunca viu na vida.
Saem do culto, também, duas amigas, com 18 e 16 anos. Melhores amigas. Elas começaram a frequentar esse culto há pouco mais de um mês. Sentem-se seguras e acolhidas por esse grupo.
Buscam algum tipo de orientação para seus espíritos e aquelas palavras trazem certo conforto.
Aquela noite, no entanto, saíram sentindo dentro de si um leve incômodo que não sabiam identificar.
Andaram alguns quarteirões em silêncio, até que a de 18 anos rompe esse manto suave que as cobria e protegia de ruídos: "Meus pais me mandaram sair de casa.".
A outra a observa longamente. Sem perceber pararam justamente embaixo de um poste que as iluminava com uma luz amarelada. Ela retoma: "Eles acham que preciso ser independente.".
A de 16 anos continua mirando a amiga. Percebe as lágrimas se acumulando no canto daqueles enormes olhos verdes e sente o coração se expremendo como um balão de gás esvaziado.
Infinitamente melancólico. Passa as mãos nos cabelos loiros dela e a envolve num abraço. Um abraço gigante, onde cabem todas as lágrimas e angústias da amiga.
Onde a cabe inteira, mesmo medindo 1,73m, enquanto ela mesma só tem 1,57m. Onde cabe o mundo.
A menina loira, alta, de olhos verdes enormes acalma os soluçõs nos braços da outra que lhe parece infinitamente maior, embora só tenha 16 anos e 1,57m.
Olham-se nos olhos. Sentem uma pela outra um carinho sem medida. Sem começo nem fim. Um amor grandioso e delicado. Beijam-se suavemente, como se selassem num pacto aquele sentimento.
O dono do restaurante ao lado também sai do culto com sua esposa numa cadeira de rodas. Eles sofreram um acidende de carro há oito anos. Ele dirigia, mas estava exausto.
Ela adormeceu no banco do carona e os dois filhos dormiam no banco de trás. Em um segundo que seus olhos ralentaram ao piscar perdeu o controle do carro, que capotou duas vezes.
Sua mulher sofreu fraturas de coluna e craniana. Seu filho mais velho, de 13 anos, morreu na hora e o mais novo, de 8, perdeu uma perna.
O homem passa pelo restaurante, busca o filho, que agora tem 16 anos e toca sax lindamente e os leva para casa. Enquanto todos dormiam ele chorava.
Primeiro de maneira discreta e triste, depois suas lágrimas se transformaram em soluços violentos e compulsivos. Chorou uma dor desesperada. Uma dor inconcebível.
Uma dor inexplicável. Uma dor que só um homem que arrancou a liberdade da esposa, a perna de um filho e a vida de outro pode sentir.
No meio da rua um bloco de carnaval passou por entre transeuntes. Máscaras de papelão que estampavam rostos sofridos e eufóricos.
As expressões oscilavam da máxima alegria à tristeza absoluta. Não havia nenhum nuance demonstrativo que passasse entre esses dois extremos.
Assim como numa fotografia em branco e preto onde os contrastes se fazem mais presentes que as graduações de cinza.
Desfilaram máscaras com sorrisos rasgados e olhos melancólicos.Bocas abertas em choro fatídico e olhos esbugalhados com lágrimas de vidro.
Um entrelaçar de cabeças com sentimentos fulgazes. Caminhavam pelas ruas numa procissão e seus corpos vestidos de preto se esbarravam sensualmente.
Encostavam seus corpos uns nos outros, enquanto moviam-se juntos, chorando e rindo em silêncio. Esfregaram-se e, um a um, começaram a se tocar.
Começaram a dançar, misturando claros e escuros de emoções opostas. Os rostos de papel beijaram e lamberam outros rostos de papel,
transformando recortes bem delineados em amassados e borrões. Metiam as línguas em oríficios de bocas rasgadas e olhos esbugalhados até arrombarem esses esboços de rostos humanos.
Até reduzirem esses desenhos a personagens disformes. Monstruosidades. Abraçando uns aos outros, penetrando uns nos outros.
Fudendo, todos juntos, no meio daquela rua. Pequenas aberrações vestidas de preto. Até que os beijos molhados foram pouco a pouco violentando aqueles corpos sem rosto.
Até que as carícias foram ferindo. Até que o que era agrado tornou-se estrago. Até que mãos brancas e frias cravaram as unhas até se tingirem de vermelho.
O que era inteiro converteu-se em pedaço. E o que era movimento alterou sua essência. Ficou estático na calçada. Pedaços de carne compondo um quadro orgânco.
Entre esses intervalos temporais, intervalos de branco e preto, milhares de facetas existiram. Quem se ateve aos extremos de máscaras de papelão não pode perceber.
Destruíram os detalhes. Desfizeram as sutilezas. Sobrou um pouco de matéria bruta no chão. O que restou acima dele foi brisa etérea. Ninguém pode enxergar.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Almoço de domingo

Riu-se. E como de costume tremeu o corpo todo. Toda a sua opulencia sacudia-se com a gargalhada gostosa, longa.
Tinha o cheirinho de maçã com canela, dos bolos que fazia. Sempre que me recordo dela me vem os olhos castanhos e alegres, sorrindo o tempo inteiro pra mim.
É assim que vou desenhando minhas memórias. Lembrando das cenas entrecortadas, dos perfumes, dos gostos,
e vou juntando uma peça na outra, como em um quebra-cabeça.
Vou construindo meu passado como um mural de fotografias. Adiciono sempre uma música de fundo, para me confortar.
Às vezes adiciono também algumas lembranças de um filme que assisti, faço algumas modificações
e crio outros momentos felizes, porque todo mundo precisa de passagens bonitas na vida.
Não que eu não as tenha, mas algumas se perderam no vasto terreno da minha fraca memória.
Então não sei dizer muito bem até que parte as lembranças são minhas e a partir de onde são lembranças alheias que recolhi e acolhi ao longo dos livros e histórias
que me percorreram.
Chegava na casa dos meus avós todo o domingo para o almoço de família e meu avô vinha mancando com a perna que não dobrava,
devido a um ferimento que sofreu na guerra, me abraçar. Me olhava com aqueles olhos muito azuis e perguntava com aquele sotaque espanhol, quase indecifrável pra mim:
"Quieres un caramelo, niña?" Sacava de dentro do armário um pote cheio de balas de cereja e me deixava pegar um monte delas.
Minha avó estava sempre risonha, com os caracóis prateados enfeitando seu rosto e um óculos enorme que a deixava com um ar eternamente doce.
Sua figura me lembra uma coruja antiga e sábia.
Ficava tão feliz quando chegavamos que não parava de falar.Falava e ria-se. Sacudia-se por inteira.
Contava as novidades, me abraçava muito e sempre cozinhava um banquete, que fazia com que nós passássemos a semana comendo os restos das delícias.
Comprimentava a todos e depois subia as escadas comigo, para o segundo piso, e passavamos um tempo sem fim brincando de bonecas.
Brincavamos sem pausas, até que meu avô nos convocava pra oração de antes das refeições. Sentávamos à mesa e ouvíamos a rádio espírita que abençoava a comida e a todos.
Comíamos uma refeição farta e vegetariana. Finalizávamos aquele momento juntos comendo os doce que minha avó preparava. Pecava pelo excesso, sempre.
Aquelas tardes eram verdadeiramente aconchegantes e cheias de maravilhas. Depois dos meus pais passarem a tarde conversando com meu avô, por vezes, com meu tio e minha tia,
e eu brincar e ouvir histórias mágicas sobre burrinhos verdes e dar alface e tomate pro Jorgiho, o cágado, eu pedia insistentemente pra dormir lá.
Por mim, esses dias na casa deles, não teriam fim nunca.
Nos dias que meus primos também iam pra lá nós brincavamos de pique-esconde no jardim. Eu sempre me escondia no meio das flores.
Uma vez eu me escondi atrás da Comigo-Ninguém-Pode. Meu primo, que é mais velho do que eu uns 4 anos,
disse que eu nunca mais poderia colocar os dedos nos olhos e nem na boca.
Mesmo que eu lavasse as mãos um milhão de vezes eu iria morrer envenenada quando fosse comer alguma coisa.
Eu chorei tanto que ele teve que me provar que eu não ia morrer colocando ele mesmo a mão na planta e depois na boca.
Na parte de trás da casa ficava uma área reservada pro Jorginho, que depois que meus avós faleceram e nós o doamos para o Jardim Botânico desobrimos que era Jorginha.
O cágado ficava sempre escondido debaixo de uma montanha de folhas secas.
Eu levava alface e tomate pra ele e, enquanto eu o chamava pelo nome, ia pouco a pouco se mostrando. Vinha devagarzinho, esticava o pescoço e comia na minha mão.
Era um ritual incrível.
Outra lembrança que tenho é das vezes em que eu tomava banho lá e a minha avó derramava o vidro quase inteiro de perfume de alfazema em mim.
Eu ficava cheirando a alfazema por dias. Ela dizia que era bom pra matar piolhos, acalmar as crianças, harmonizar o espirito e matar os gérmes.
O cheiro da alfazema é o cheiro dessa época.
No andar de cima tinha um quarto que nós chamavamos de quarto do entulho. Lá havia as mais variadas bugingangas e troços sem utilidade.
Era lá também que ficavam guardados todos os jogos e brinquedos que eu adorava.
O que era um problema, porque a rinite alérgica e bronquite me condenavam todas as vezes que eu adentrava o paraíso.
Hoje senti a nostalgia me invadindo primeiro pelas narinas e depois consumindo o resto do corpo inteiro.
Foi o cheiro de comida que vinha da rua que deu inicio a essa sequencia de recordações.
Me fez lembrar de coisas que eu já nem sabia mais que ainda habitavam o terreno das memórias esquecidas.
Então, num impulso saudosista e de sensibilidade exagerada, resolvi percorrer de novo essas tardes e visitar a casa dos meus avós.
Comecei entrando pelo portão da frente, branco, que se iluminava por raios de sol tímidos do final da tarde, que escorriam por entre os galhos das árvores.
Passei pela varanda e me deparei com o hall de entrada, todo branco. Vovô sentado em frente a televisão, na sala ao lado. O vi do hall.
Começou um filme de guerra e ele rapidamente a desligou. Odiava filmes de guerra. Pegou a bengala e mancou até onde eu estava.
Usava calças compridas, cáqui, uma blusa branca e os suspensórios.
Me olhos com os olhos azuis enormes e senti seus fios de cabelo brancos e macios como a penugem de um pássado contra o meu rosto, enquanto me abraçava.
Atravessei a sala e o corredor e minha avó estava arrumando a mesa da copa para o almoço.
Édina, a moça que trabalhou lá desde que eu era 'uma minhoquinha branca', ajudava-a. Minha avó ficou muito feliz com a visita. Riu bastante e me abraçou muito.
Falava sem parar. Um vestido de flores pequenas e a armação dos óculos de coruja enquadravam olhinhos de luz.
Percorri a casa toda. Passei pelos corredores e tentei redesenhar todos os quadros das paredes. Todas as santas em seus devidos reservatórios. Achei os pequenos livros.
Comi uma bala de cereja. Entrei no quarto de cima. Meu paraíso infantil. Aspirei aquela lembrança junto com todos os ácaros e senti que já nao me faziam espirrar.
Depois desci as escadas e visitei o Jorginho. Lembrei de todas as fadas e duendes que dividiam comigo o jardim daquela casa.
Dividiam comigo as noites em que eu demorava a dormir e observava meus avós, um em cada cama, dormindo profundamente.
Minha avó ressonando e meu avô coberto por uma tela que protege bebês de insetos. Ele tinha uma pele muito delicada e qualquer picada de mosquito feria essa superficie alva e fina.
Hoje não sei dizer o que me fazia acreditar em criaturas místicas. Se era o sono, a imaginação, os livros, ou as tardes e noites na casa dos meus avós.
Dessa vez não foram eles que vieram me visitar, mas eu que os procurei nos cantos da sala, cozinha e jardim. Embaixo de pedras e dentro das flores.
Encontrei todos eles. Percorri aquela casa e passei meus dedos pelas paredes insólidas. Sentei no banco que não existe mais. Pousei meus olhos sobre aquela casa com contornos cada vez mais difusos.
O quarto de brinquedos, já não sabia mais se ficava no andar de cima ou debaixo. E no corredor de baixo uma porta se abria e eu já nao me lembrava mais para o que.
Na verdade ela não se abria mais. Guardava ali dentro alguma reminiscência que eu não tinha acesso. A copa se esfumaçava enquanto os objetos iam sumindo pouco a pouco.
Não havia mais mesa. Paredes desapareciam e a geografia da casa se alterava. Nada além de mim vagava naquele terreno.
Ainda podia ouvir o som da rádio espírita, muito ao longe, abençoando o almoço que não teríamos nesse domingo.
Pelo menos o portão ainda existia. Não era mais branco, mas os raios de sol ainda iluminavam timidamente, escorrendo por entre os galhos das árvores.

sábado, 9 de abril de 2011

Estabanamento ou amor

Manchei você com tinta. Fiquei tão apaixonada pelas estrelas do céu da sua boca que derrubei minhas latas de tinta sobre você.
Foi estabanamento ou amor.
Fiquei com medo de você ficar triste, mas não tinha um cinza em você. Respingou muito amarelo, rosa, verde, azul e laranja.
Me encostei em você pra te resgistrar em mim e fiquei de muitas cores.
Guardei umas nuvens que achei no fundo da minha xícara de chá e servi pra você. A consistência é leve e você pode ficar com elas.
Hoje, quando acordei, o amanhecer tinha sido aberto com uma faca.
O céu tava rosa e tinha passarinho voando.
Como eu sabia que você ainda dormia, costurei a noite de volta.
Ficou tudo azul marinho e eu fiz uns furinhos no firmamento pra luz passar.
Ficou fresco. Ficou macio, o tempo. Igual a asa de borboleta quando você passa o dedo.
Pousaram umas na minha cama, quando a tarde caiu. O céu não tava nem azul marinho e nem rosa. Tava laranja.
As borboletas flutuaram pela janela do quarto até acharem meu travesseiro.
Acharam meus cabelos deitados no travesseiro, enquanto eu lia um conjunto de folhas que a gente chama de livro.
Depois acharam meus ouvidos que tavam ouvindo o silêncio. Aí entraram todas nos meus ouvidos, as borboletas.
Fizeram um ninho lá dentro e nasceu uma música.
Quando o céu tava laranja e tinha uma música num ninho dentro dos meus ouvidos eu beijei uma rã.
Ela era verde quase terra, quase mato.
Sorriu e me contou uma história de joaninha que vive dentro de flor.
Hoje achei uns poemas dentro de uma concha. O sol era amarelo manga e meu sorriso também.
Li os poemas e peguei um balão. Subi igual aos passarinhos que achei na manhã que costurei. Subi tão alto que fui até o espaço.
Encontrei uns astronautas que falavam de dunas de areia e oceânos e disse a eles que tinha um ninho de borboletas dentro de mim.
Eles me mandaram procurar uma árvore e despejar um quilo de distração nela.
Procurei uma árvore distraída e pinguei gotas de lavanda.
Ela devolveu bolhas de sabão que tinham borboletas dentro. Tinha também uma lagartixa, macia como a asa de borboleta quando você passa o dedo.
Fresca como a noite azul marinho e leve como as nuvens da minha xícara de chá.
Manchei você com as cores do meu dia. Acho que você não ficou triste porque era um dia meu pra você. Porque eu registrei você em mim.
Acho que os astronautas te contaram que eu costurei aquela manhã aberta com faca.
Ou então foi aquela rã. Ou então foi estabanamento ou amor.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Quietude nociva

Muito se fala e tudo se cala.
Sou palavras abertas para você se expressar, mas insistes em usar o dicionário.
Há, entre, muitos parêntesis.
Há, além, muito pendente.
O que se há de fazer com essas reticências no meu colo
ou com esse silêncio em minhas mãos?

quinta-feira, 17 de março de 2011

Respirei, mas foi rápido demais...

Quando deitou-se na cama aninhou-se como um filhote de cachorro no ventre da mãe. Sentia frio, apesar do clima ser quente.
Fixou os olhos na parede branca do quarto e tentou lembrar-se do rosto dele. Sentia um nó na garganta enquanto tentava relembrar cada traço.
Cada ruga de expressão, cada contorno, a cor dos olhos, a textura dos cabelos e da pele. Tentou recuperar o cheiro em suas narinas. Mas era um trabalho árduo e ela sentia que exigiria um esforço muito grande.
Era verdade que ele estava presente em sua memória todos os dias.
Pelo menos uma vez entre o nascer e o morrer do sol a imagem dele projetava-se em sua mente como num filme. As aparições variavam.
Às vezes eram lembranças fulgazes, às vezes eram questionamentos sobre por onde ele andaria, o que estaria fazendo. Às vezes eram pensamentos atormentadores,
como se ele estivesse esquecido o rosto dela, não se lembrasse mais do timbre da sua voz ou da cor dos seus olhos. Se ele a confundia com outros olhos ou outras vozes.
Outras vezes a presença dele se fazia de maneira injusta, pois ela não podia se defender da maneira como ele aparecia.
Vinha visitá-la em sonhos. Chegava manso, como o azul do céu. Afagava-lhe os cabelos, a acolhia junto ao peito.
Seu coração disparava e ela acordava com lágrimas escorrendo timidamente pelo canto dos olhos.
Conheceu outros abraços, outros sorrisos, mas seu caminhar, ultimamente, parecia descompassado. Estava fora do ritmo. A música tocava, mas ela nao conseguia dançar.
Olhava para esses novos olhos, olhava-os bem profundamente, mas eles mudavam de formato, lentamente. Mudavam de cor.
Transformavam-se naqueles olhos castanhos, conhecidos de outros tempos.
Aqueles olhos que a reconheciam depois da ausência longa.
Estranhamente agora, deitada em sua cama, não conseguia lembrar-se daqueles olhos. Sua mente parecia confusa e ela sentiu, de repente, um buraco no estômago.
Sentiu um vazio por dentro que fez com que se encolhesse ainda mais. Parecia agora com um caroço de feijão.
Sua cabeça pensava, mas pensava coisas sem cadência alguma.
As coisas engraçadas já não pareciam tão divertidas assim. Os segredos não pareciam mais tão secretos. Os desejos não eram tão intensos.
Não sabia em que momento essas coisas haviam escapado dela. Quando foi que seus olhos perderam esses detalhes?
Lembrou-se do que Jan lhe contara sobre as repetições e sobre a fronteira que existe no homem, presente desde que abrimos os olhos para luz.
A repetição que torna-se visível num momento em que a fronteira que divide a doce melodia da vida do silêncio pesado se revela.
Como poderia escrever se suas palavras se repetiam incansávelmente? Seus versos soavam como ladainhas. Não tinha o frescor das idéias novas. Perdera-o no caminho.
Caira de sua cabeça enquanto ela se movia de maneira desengonçada, tentando dançar uma música dissonante. Uma dança rápida demais para ela.
Tentou acompanhar, descolou-se velozmente, mas havia um descompasso. Ela não entendia o que a música dizia e tentava dançá-la com movimentos ridículos.
Hoje, quando deitou-se na cama, sentiu-se cansada. Sentia que não podia mais lutar para entrar nessa dança.
Sentia-se esgotada de deslocar-se tentando acompanhar algo que não fazia parte dela.
Ela debatera-se como quem tenta chegar ao outro lado do oceano, mas morrera na praia.
E agora não sabia no que se apegar. As ondas iam e vinham num movimento repetitivo. Batiam na sua cabeça e ela ficava irritada com aqueles intervalos cronometrados.
Olhava suas poesias e sentia raiva delas. Queria rasgá-las, todas. Eram sempre as mesmas. Tratavam sempre do mesmo tema.
Mirava-se no espelho e sua imagem parecia desgastada. Quase desbotada.
Uma melancolia imensa invadia o quarto como a água da chuva que entrava pelas frestas das portas e janelas.
Foi inundando seu quarto lentamente, tornando tudo cada vez mais silencioso e azul. Deixando aquele ambiente mais suave e azul.
Até que a água chegou ao teto e ela flutuou como um astronauta no espaço, com movimentos absurdamente lentos.
Ela sentia cada movimento do seu corpo e cada palpitação do seu peito. Consciente de cada músculo. Sua mente completamente esvaziada.
Creio que todos os pensamentos saíram pelos seus olhos, ouvidos, boca e narinas conforme a água entrava, afogando-a.
Aquele ritmo era rápido demais para ela. Não bastava sentir seu corpo. Ela precisava sentir por dentro.
Agora ela flutuava muito lentamente e, se sua mente não estivesse completamente esvaziada, tenho certeza de que poderia compreender perfeitamente a melodia que tocava.

domingo, 6 de março de 2011

Uma noite

Ela usava um vestido preto. Mas ele não durou nem a primeira hora no seu corpo.
Entraram na casa e foram conhecendo o ambiente. Uma sala muito ampla e arejada composta por um sofá, uma mesa de centro com milhares de fotos espalhadas, de família.
Ele juntou todas para abrir espaço e fazer uma entrada para os dois. Uma mesa de queijos e vinhos, quem sabe. Eles, obviamente, não comeram os queijos. O vinho, sim. Beberam inteiro.
As mãos dele lhe arrancaram o vestido com uma violência gentil. Quase que pedindo desculpas pelo gesto. As mãos dela se livraram da camisa dele.
E aquele gestual tinha uma cadência poética. Um ritmo que não era lento, mas que vinha de outros tempos.
As roupas não levaram 5 minutos para serem tiradas, mas aquele movimento já havia começado há anos.
Ele havia tentado tirar não uma peça de sua roupa, mas uma camada de sua superfície. Havia tentado estar mais próximo dela, mas sentia que ela era como uma cebola.
Quantos mais camadas lhe retirasse mais outras surgiam, como num livro onde ele arrancava as páginas e sempre encontrava outra em seguida.
Fazia aquilo num movimento compulsório e esgotante. Até que um dia sentiu que já não podia mais fracassar e acabou por se render ao cansaço.
Quando marcaram o encontro, mesmo com a experiência firme em sua carne, sua alma lhe soprava uma brisa de esperança de que talvez pudesse enfim chegar ao miolo daquele ser.
Uma expectativa tímida e camuflada lhe despertavam.
Subiram as escadas com pressa.
Ele a tomou nos braços, como há muito tempo desejava fazer e ela se deixou levar.
Chegaram no quarto, ele a jogou na cama e ela o mirou com aqueles olhos que ele nunca soube decifrar por mais que tentasse com um esforço de quem carrega tonaladas nas costas.
Deixou todo o peso do seu corpo (agregado àquelas toneladas) cair sobre o corpo dela como se isso pudesse fazê-la senitr na pele um pouco daquela angustia suprimida.
Tentando fazê-la pagar por isso, esmagando-a. Ela fechou os olhos e sorriu com um prazer sincero.
Foram se beijando, acariciando, lambendo, apertando, expremendo, chupando. Tudo isso intercalando violência e brandura.
Ele tocava-lhe o sexo e olhava o rosto dela para ver as expressões que poderiam florescer.
Sentia seu corpo fervendo, mas tinha toda a sua concentração voltada para o que ela sentia.
Queria absorver todos os nuances daqueles olhares. Cada franzir do entrecenho. Cada estremecer dos lábios. Cada suspiro.
Fixava seus olhos no rosto dela e as mãos entre as pernas e explorava aquele universo.
Queria descobrir seus pontos de maior prazer. Mas percebia que aqueles momentos de tesão eram efêmeros e se desfaziam com a mesma rapidez com que se formavam.
De vez enquando a surpreendia com os olhos vagando pelos cantos do teto do quarto e sentia que até na cama ela podia lhe escapar como uma mosca.
Apertava seu corpo contra o dela com tanta força que notava em seu rosto uma demonstração de dor. E algumas vezes sentia prazer com isso.
Era uma das coisas que podia fazê-la sentir de verdade.
Pelo menos uma dor física e não tão sofrida. Ele não queria fazê-la nenhum mal, mas, às vezes, era acometido por um desejo de vingar-se.
Ela havia o feito sofrer imensamente e ele seguia tentando imprimir nela algum tipo de sentimento.
Apertava, então, seu corpo contra o dela como se pudesse adentrar um pouco naquele universo paralelo que era ela.
Penetrava seu pênis no orifício como se fosse ele quem estivesse entrando no mundo dela.
Penetrava-a e a olhava muito. Queria olhá-la dentro dos olhos pra ver se essa entrada era permitida. Se era real. Mas os olhos dela fugiam dos dele e, quando se encontravam, era por segundos brevíssimos.
Tão breves que ele ficava na dúvida se realmente tinham existido ou se ele tinha imaginado que ela o olhava nos olhos.
Ele fazia sexo com ela tentando prolongar o máximo que podia aquele ato, para ver se era possível submetê-la ao cume da satisfação. Para vê-la explodir em gozo.
Terminou fracassando. Não pôde conter seu corpo e quando terminou e a abraçou sentiu vontade de chorar.
Ela o abraçou de volta, sem perceber aquela frustração.
Ficaram na cama, nus, durante horas, conversando. Levantavam vez ou outra pra beber mais um copo de vinho ou para ir ao banheiro.
Em um certo momento ela se calou e aquilo o inquietou de uma maneira incontrolável.
Queria saber o que se passava na cabeça dela a todo custo e não conseguiu se conter em perguntar o que a deixava muda.
Ela sorriu, docemente, como costumava fazer. Acaricou-lhe o rosto e ficou observando aqueles enormes olhos castanhos.
Ela não disse nada e aquilo foi ganhando proporções extraordinárias.
Ficou, de repente, extremamente cansado.
Soube, naquele momento, que a intimidade que tiveram naquele quarto era infinitamente menor do que a intimidade que poderiam ter se ela deixasse que ele soubesse o que se passava na mente dela.
Então se deu conta de que todo aquele esforço e esperança fresca que até então lhe soprava os ouvidos,
de que junto com cada peça de roupa que lhe tirava, arrancava junto um pedaço de resistencia dela, foi por água abaixo.
Poderia deixá-la completamente nua. Poderia introduzir seu sexo no dela por inteiro, que nunca conseguiria adentrar verdadeiramente aquele corpo.
Os olhos dela estariam sempre vagando por algum lugar do teto e o seu sorriso seria sempre doce e fulgaz.
Nesse momento sentiu uma onda de melancolia invadir o seu peito, enquanto ela passava os dedos pelo seu cabelo, distraidamente.
Depois ela levantou e disse que precisava ir embora. Recolheu suas roupas e beijou-o nos lábios.
"Pelo menos me ligue, quando chegar em casa.".
"Vou ligar!"
A porta se fechou e ele viu como o teto era próximo da cama. Como as paredes eram próximas da cama.
Os copos de vinho vazios, próximos da cama.
Ele adormeceu antes que ela pudesse ligar.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Capítulo 1

Saiu de casa, bateu a porta e pegou a bicicleta encostada na grade da varanda.
Desceu as escadas e começou a pedalar pela rua.
Começou a pensar nas besteiras que tinha acabado de ouvir da sua mãe e sentiu a raiva subindo pelas paredes do seu corpo.
Sentiu sua pele esquentar e a amargura daqueles momentos arranhando a garganta.
Como podiam ser tão diferentes? Como a barriga que a guardou durante nove meses, os seios que a amamentaram, o colo que a ninou podiam trazer-lhe agora tanta repulsa?
Os olhos se encheram d'água e ver a avenida pela qual andava tornara-se mais difícil. Apertou então os olhos pra que as lágrimas saíssem do seu campo de visão.
Quando entrou na casa da mãe para poderem discutir sobre a decisão que havia tomado já sabia que seria difícil fazê-la entender porque estava agindo daquela maneira.
Sabia, desde o principío, que o momento em que fosse forçada a dar satisfações a sua mãe as coisas entre elas desandariam mais uma vez.
Aquela estabilidade na relação, tão dificil de ser alcançada, e tão impecavelmente mantida em manutenção durante esses anos seria abalada.
E provavelmente, dessa vez, não haveria forma de contornar a situação e reverter esse ciclo de discussões, ofensas, sofrimento e luto.
Tinha dito a si mesma que seria a última vez que daria satisfação a sua mãe sobre a sua vida.
O que ela não sabia era que esse não era o seu real desejo, mas foi exatamente assim que aconteceu e isso a encheu de remorso pelo resto da vida.
Quando José entrou na sua vida, muitas coisas mudaram. Na verdade, tudo mudou.
O que ela esperou da mãe não foi nada mais do que qualquer filha poderia esperar: O apoio, a amizade, as palavras de consolo, ou, minimamente, a compreensão que nunca veio.
Sua vida virou de pernas pro ar seguindo a cadeia de desgraças que foram caindo sobre a sua cabeça:
conhecer Manuel, se apaixonar por ele, descobrir toda a maldade que poderia haver dentro de um homem,
terminar um relacionamento conturbado, ser ameaçada de morte, ser espancada, ser estuprada por esse ex amor da sua vida.
Sua mãe nunca deixou de culpá-la por ter sido tão ingênua e leviana.
E durante muito tempo acreditou que a culpa do estrago irreparável que haviam causado na sua vida era unicamente dela.
Longos períodos se estenderam sobre ela e a sua única confidente era a culpa, que não a abandonava nem durante as noites, pra que pudesse descansar um pouco.
Muito pelo contrário, era exatamente nesses momentos em que a culpa entrava pelas brechas das portas e janelas, como um gás venenoso,
penetrava pelas suas narinas e intoxicava o mais íntimo de sua alma.
Sentia todo o peso da culpa comprimir seu corpo e esmagar seus ossos enquanto chorava, sozinha, pedindo perdão a Deus por algo que nem ela sabia como tinha feito.
Quando descobriu que estava grávida as coisas declinaram sensivelmente.
Tinha perdido o contato com todos os seus amigos enquanto namorava Manoel, pois ele a proibia de encontar com eles,
alegando que eram pessoas perdidas e interesseiras. O ciúme descabido de Manoel e o amor irremediável que ela o dedicava fizeram com que seu universo se restringisse aos dois.
Afastou-se até de sua família, já que Manoel sentia que não tinha a aprovação dentro da casa dos pais dela.
A gravidez veio como um soco na boca do estômago. Sentiu realmente que a sua barriga afundava infinitamente,
como se todo o seu corpo pudesse se voltar pra dentro dela e ela fosse potecialmente engolida por esse monstro que agora habitava seu ventre.
Percebia seu corpo apodrecido, já que a semente de Manoel florescia dentro dela.
Recorreu a um amigo de infância quando sentiu que suas forças se haviam esvaído por completo devido a todo o desgate emocional.
Precisava de algum apoio, uma bengala que a mentivesse erguida, ainda que escorada, pra enfrentar essa onda de concreto que lhe tirava toda a vida que ainda residia no seu corpo.
Seu amigo apresentou-lhe a namorada que conhecia um chá que garantia a secura das sementes idenvidamente plantadas.
A mulher explicou que ela deveria ferver 3 folhas da erva. Nem uma a mais, nem uma a menos. Em dois dias tudo estaria terminado.
Nesse dia, quando chegou em casa, sentou-se no chão de madeira corrida, iluminada por um raio de sol que invadia a sala por uma fresta.
Pegou uma xícara de porcelana, o bule fumegante e colocou, delicadamente, três folhas da erva dentro da xícara.
Contemplou as folhas secas durante alguns minutos e, num movimento tão lento, quase que em câmera lenta, retirou uma das folhas.
Despejou a água fervendo sobre as duas plantas que restavam e ficou observando a fumaça subindo concreta, branca, contra a luz que entrava, e depois se desfazendo facilmente.
Desmanchando-se sem deixar nenhum vestígio de existência. Pensou em toda a sua preocupação e desejou que tudo se transformasse naquela fumaça.
Como no ritual de um feitiço, proferiu seu desejo em voz alta para o chá. Depois bebeu o líquido marrom. Deus uns dois goles e cuspiu o resto.
O gosto de merda impregnou seu paladar, olfato. Parecia estender-se até o cérebro. Sentiu uma dor de cabeça absurda e apagou.
Acordou no dia seguinte com o raio de sol bem mais forte. Notou que havia passado a noite inteira caída na sala.
Depois percebeu que havia feito suas necessidades enquanto dormia. Arrancou a roupa e correu para o banheiro com a ânsia de vômito antecedendo a moléstia.
Tomou um banho, chorando descontroladamente. Tremendo. Sentia o medo presente em cada parte do seu corpo. Entrou em pânico.
Não sabia o que era aquela erva. Não fazia idéia do que aquilo seria capaz de causar ao seu corpo. Sentiu medo de morrer, ter um enfarte, um derrame, ficar retardada.
Não entendia como não tinha conseguido se segurar. Como seu corpo perdera a razão e se comportara como o de um bebê.
Ainda em pânico, ligou para o amigo, que veio às pressas com a namorada até sua casa.
A mulher a acalmou, dizendo que tudo aquilo era natural. Era o corpo dela expelindo tudo o que não prestava. Vômito, urina e fezes eram o que saíria primeiro e com maior facilidade.
Depois seria o feto que a deixaria, enfim.
Os dias se passaram. Os meses, os enjôos, os desejos e a barriga crescida acabaram entregando que os planos não funcionaram.
Quando foi ao médico, estava no 5º mês de gravidez, "graças a um milagre a criança estava bem!".
Parecia que o pesadelo se estendia numa linha de tempo agora indeterminada.
Na mesma hora sua memória entregou sua fraqueza. Três folhas. Nem uma a mais, nem uma a menos. Naquela tarde ela fez um chá usando duas folhas.
Não sei dizer se foi medo ou se alguma coisa dentro dela lutava contra aquilo.
O médico terminou de destrui-la quando confessou que alguma coisa parecia um pouco estranha com o seu bebê.
"Parece que a criança sofrerá de uma deficiência mental".
Não sei se sou capaz de narrar com riqueza de detalhes o decorrer dos fatos a partir dessa consulta.
E nem mesmo ela era capaz de se lembrar de tudo agora, pedalando e relembrando esses acontecimentos.
Sentia agora, sob o céu arroxeado, algumas gotas de chuva começando a cair.
Quanto mais rápido pedalava, mais forte sentia as gostas batendo contra o seu rosto.

domingo, 9 de janeiro de 2011

[ ]

Quando se olharam pela última vez nos olhos alguma coisa dentro dela disse que para que um novo encontro acontecesse isso levaria tempo.
Sentiu uma certeza, que quis duvidar, de que aquela conversa, como muitas outras que tiveram, descontraída e descompromissada, era uma despedida e
na hora de ir embora beijou-o. Colou seus lábios nos dele durante longos segundos e o beijo foi dolorido. Ela sabia que seria o último.
Saiu do carro e ficou repassando tudo o que haviam conversado. Tudo o que ele havia lhe dito. Repassou cada palavra, cada olhar, cada toque e intonação.
Fazia isso numa tentativa desesperada de registrar tudo o que tinha acabado de acontecer. Uma maneira de guardar tudo na memória exatamente como ocorreu.
Infelizmente sua memória já a traía e as lembranças se confundiam.
Sabia que estava pisando num terreno delicado. Abrir-se pra alguém não é um ato simples e muito menos simplório.
Com ele o caso não foi simplesmente de abrir-se. Desarmou-se por completo diante dele. Despiu-se de defesas.
Foi intensa, porém, leviana. Ainda não sei se foi um ato corajoso ou irresponsável. Mas estava, de fato, entregue.
Bocas ansiosas repetem como num mantra que a entrega e a crença são virtudes admiráveis,
mas sua mente desnorteada não pode considerar essas qualidades vantajosas para si.
Quando conversava com ele olhava-o dentro dos olhos como quem olha dentro da alma de alguém.
Absorvia-o numa doce rendição e esquecia filtros, armaduras ou suportes.
Aquilo parecia bastar. Sentia-se junto dele.
Toda aquela transmissão sustentava por trás dos olhos e na ponta da língua um pedido tolo e tímido: "Apenas não minta pra mim."
Se ele realizasse esse único desejo sentia que nada mais teria tanta importância. Qualquer coisa seria contornável.
Nunca deixou que seu pedido saísse de sua boca, mas pensava que ele compreenderia sua necessidade de ser sincera e de ouvir sinceridades.
Olhava-o e as palavras flutuavam na sua cabeça, passando pelos seus olhos como um letreiro: "Apenas não minta pra mim."
Era absolutamente verdadeira e seu pecado foi esperar que o que vinha dela viria do outro lado como numa via de mão-dupla.
Provavelmente foi aí que sua entrega deixou de ser corajosa e passou a ser uma negligência de si.
Pois amar sempre foi um ato que não requer absolutamente nada. É belo por si só. Mesmo só, é belo. É belo e só.
Mas abandonar-se frente a um amor não é uma atitude inteligente. A beleza esfria, ganhando contornos mais rigidos e coloração mais sóbria.
Deixou que o tempo fosse lhe passando a perna dia após dia, numa espera eterna.
Acreditando no que sua memória cruel lhe cedia: Vagas lembranças de raros momentos.
Acima de toda e qualquer recordação o que mantinha viva a vontade de arrastar os dias na esperança de que seu barco encontrasse terra firma era a vontade de querer bem.
O desejo de estar por perto. Era o carinho, a confiança dedicada. Era fechar os olhos e pular, sabendo que uma mão a seguraria.
Era sorrir por dentro ao saber dele, mesmo que não fosse por ele.
Era catar a concha mais bonita da praia para dar de presente, quando na verdade gostaria de dar um sorriso.
Era poder, apenas, dar as mãos.
O que aconteceu foi o despedaçar da flor. Foi o salto não sucedido da mão para poupar a queda.
Foi saber dele sempre de longe. Foi dar o sorriso e ouvir o silêncio.
Será que se tivesse feito seu pedido em voz alta alguma coisa teria mudado?
Será que o golpe teria sido ao menos mais gentil?
Deixou as lágrimas rolarem pelos olhos. Uma seguida da outra levando cada uma um pedacinho de sofrimento. Foram brotando e despencando do precipício.
No final sentiu-se vazia por dentro. Seca. Sentiu o nó na garganta e forçou o choro pra ver se havia ainda alguma coisa. Nada.
Então percebeu que faltava um pouco de delicadeza em todo esse ritual de tristeza e, por fim, amou-se.
Colocou uma música, deitou-se no chão fresco e ficou sentindo as batidas do seu próprio coração. Sentindo seu ventre subir e descer num movimento livre.
Foi sentindo-se cada vez mais fiel a ela mesma.
Entendendo a importância do momento fechou os olhos e ficou só consigo e ficou feliz por ter se achado num momento em que quase se perdeu.