sábado, 30 de abril de 2011

Facetas

Um grupo de cristãos, sentado em círculo, ouve um relegioso falar sobre Deus. Dão as mãoes e fecham os olhos.
No restaurante ao lado o filho do dono ensaiava sax para a apresentação de natal, com as luzes parcialmente apagadas.
Num apartamento do prédio mais baixo da rua um homem e uma mulher, de aproximadamente 25 anos, dançam juntos, sem música
e no apartamento ao lado três amigas comem brigadeiro e fazem confissões amorosas.
Numa sala um professor ensina matemática ao seu aluno preferido. Seus olhos transbordam de ternura enquanto o menino desenvolve as questões.
Próximo dali uma mulher de 43 anos amamenta seu primeiro filho, concebido por inseminação artificial e a atmosfera do quarto é um bafo quente e alaranjado de aconchegante amor.
Na cidade vizinha dois adultos dormem numa cama de casal e a filha de 6 anos pede para se deitar com eles pois acaba de ter um pesadelo.
O pai se levanta, vai até o quarto da menina e conta uma história sobre princesas e naves espaciais. Ela adormece, sorrindo.
Um casal de amantes faz sexo violentamente, como se o mundo fosse terminar naquele orgasmo.
Outro casal de amantes faz sexo muito lentamente, prolongando aquele ato para toda a eternidade. Transformando o mínimo espaço entre aqueles dois corpos em espaço nenhum.
Apertando os seus corpos um contra o outro com tanta intensidade que entram um no outro e transformam-se em um só.
Duas irmãs assistem juntas a um filme de terror. De repente falta luz e elas gritam de pavor. Depois riem uma da outra.
O terceiro irmão chega sorrateiramente e as surpreende com uma máscara. Elas gritam novamente e novamente riem.
Os três acendem uma vela e brincam de fazer sombras durante toda a madrugada.
Em outra casa um menino confessa para a irmã que usou cocaína. Ela dá um tapa em seu rosto. Sente raiva dele, que abaixa os olhos enrubrecendo.
Abraça-o vigorosamente, sentindo pelo irmão uma compaixão sem fim e os dois choram.
Um grupo de amigos senta em uma mesa de bar para conversar e relembrar acontecimentos, bebedeiras, antigos amores, política e poesia. Nenhum tem menos de 65 anos.
Na mesa ao lado três jovens reconhecem os poetas famosos. Os dois estudantes de letras e o estudante de direito mal podem acreditar que tem seus maiores exemplos
a menos de dois metros deles e, numa angústia exagerada, numa timidez coberta de excitação, pulam até a mesa dos sete senhores, se apresentam - seus maiores discipulos -
e pedem para que eles recitassem uma poesia, estrofe, versos soltos, palavras perdidas. Os poetas antigos se comovem com tamanha admiração. Pedem para unirem-se a eles.
Os jovens pensam que podem morrer naquele momento, que nada mais importaria. Os 10 poetas reunidos conversam sobre tudo. Falam, sobretudo e apaixonadamente sobre poesia.
Todos poderiam morrer naquele momento pois nada mais importaria.
Depois do culto religioso o grupo se despede. Um homem de 30 anos leva o pai para casa. O pai sofre de alzheimer e o filho o leva três vezes por semana a um culto religioso
para conhecer as palavras de deus e para sentirem-se reconfortados por elas. Depois, no fim do dia, leva-o a praia para que o dourado da tarde embeleze seu dia,
o cair da noite lhes refresque a alma, o azul do mar adoce seus olhos e o calor da areia lhes acaricie os pés.
O filho pinta o pôr-do-sol enquanto o pai brinca como criança nas pequenas ondas que lambem a praia. Voltam para casa de mãos dadas, com o afeto irradiando por todo o bairro.
O homem que sofre de alzheimer é deixado na clínica todas as noites com seus amigos de buraco e com enfermeiras amáveis por seu adorado filho.
Na manhã seguinte é arrancado de sua cama por mulheres rudes, vestidas de branco e por um homem barbado, magro e de enormes olhos castanhos, que afirma ser seu filho,
mas que ele tem certeza (certeza!) de que nunca viu na vida.
Saem do culto, também, duas amigas, com 18 e 16 anos. Melhores amigas. Elas começaram a frequentar esse culto há pouco mais de um mês. Sentem-se seguras e acolhidas por esse grupo.
Buscam algum tipo de orientação para seus espíritos e aquelas palavras trazem certo conforto.
Aquela noite, no entanto, saíram sentindo dentro de si um leve incômodo que não sabiam identificar.
Andaram alguns quarteirões em silêncio, até que a de 18 anos rompe esse manto suave que as cobria e protegia de ruídos: "Meus pais me mandaram sair de casa.".
A outra a observa longamente. Sem perceber pararam justamente embaixo de um poste que as iluminava com uma luz amarelada. Ela retoma: "Eles acham que preciso ser independente.".
A de 16 anos continua mirando a amiga. Percebe as lágrimas se acumulando no canto daqueles enormes olhos verdes e sente o coração se expremendo como um balão de gás esvaziado.
Infinitamente melancólico. Passa as mãos nos cabelos loiros dela e a envolve num abraço. Um abraço gigante, onde cabem todas as lágrimas e angústias da amiga.
Onde a cabe inteira, mesmo medindo 1,73m, enquanto ela mesma só tem 1,57m. Onde cabe o mundo.
A menina loira, alta, de olhos verdes enormes acalma os soluçõs nos braços da outra que lhe parece infinitamente maior, embora só tenha 16 anos e 1,57m.
Olham-se nos olhos. Sentem uma pela outra um carinho sem medida. Sem começo nem fim. Um amor grandioso e delicado. Beijam-se suavemente, como se selassem num pacto aquele sentimento.
O dono do restaurante ao lado também sai do culto com sua esposa numa cadeira de rodas. Eles sofreram um acidende de carro há oito anos. Ele dirigia, mas estava exausto.
Ela adormeceu no banco do carona e os dois filhos dormiam no banco de trás. Em um segundo que seus olhos ralentaram ao piscar perdeu o controle do carro, que capotou duas vezes.
Sua mulher sofreu fraturas de coluna e craniana. Seu filho mais velho, de 13 anos, morreu na hora e o mais novo, de 8, perdeu uma perna.
O homem passa pelo restaurante, busca o filho, que agora tem 16 anos e toca sax lindamente e os leva para casa. Enquanto todos dormiam ele chorava.
Primeiro de maneira discreta e triste, depois suas lágrimas se transformaram em soluços violentos e compulsivos. Chorou uma dor desesperada. Uma dor inconcebível.
Uma dor inexplicável. Uma dor que só um homem que arrancou a liberdade da esposa, a perna de um filho e a vida de outro pode sentir.
No meio da rua um bloco de carnaval passou por entre transeuntes. Máscaras de papelão que estampavam rostos sofridos e eufóricos.
As expressões oscilavam da máxima alegria à tristeza absoluta. Não havia nenhum nuance demonstrativo que passasse entre esses dois extremos.
Assim como numa fotografia em branco e preto onde os contrastes se fazem mais presentes que as graduações de cinza.
Desfilaram máscaras com sorrisos rasgados e olhos melancólicos.Bocas abertas em choro fatídico e olhos esbugalhados com lágrimas de vidro.
Um entrelaçar de cabeças com sentimentos fulgazes. Caminhavam pelas ruas numa procissão e seus corpos vestidos de preto se esbarravam sensualmente.
Encostavam seus corpos uns nos outros, enquanto moviam-se juntos, chorando e rindo em silêncio. Esfregaram-se e, um a um, começaram a se tocar.
Começaram a dançar, misturando claros e escuros de emoções opostas. Os rostos de papel beijaram e lamberam outros rostos de papel,
transformando recortes bem delineados em amassados e borrões. Metiam as línguas em oríficios de bocas rasgadas e olhos esbugalhados até arrombarem esses esboços de rostos humanos.
Até reduzirem esses desenhos a personagens disformes. Monstruosidades. Abraçando uns aos outros, penetrando uns nos outros.
Fudendo, todos juntos, no meio daquela rua. Pequenas aberrações vestidas de preto. Até que os beijos molhados foram pouco a pouco violentando aqueles corpos sem rosto.
Até que as carícias foram ferindo. Até que o que era agrado tornou-se estrago. Até que mãos brancas e frias cravaram as unhas até se tingirem de vermelho.
O que era inteiro converteu-se em pedaço. E o que era movimento alterou sua essência. Ficou estático na calçada. Pedaços de carne compondo um quadro orgânco.
Entre esses intervalos temporais, intervalos de branco e preto, milhares de facetas existiram. Quem se ateve aos extremos de máscaras de papelão não pode perceber.
Destruíram os detalhes. Desfizeram as sutilezas. Sobrou um pouco de matéria bruta no chão. O que restou acima dele foi brisa etérea. Ninguém pode enxergar.

Um comentário:

  1. Muito bom Isa, adorei as definições da vida de cada personagem na primeira parte, muito terna, muito tocante e da procissão dos opostos na segunda...Assim como o texto, dividido entre a ternura e a bestialidade.
    :*

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