quarta-feira, 20 de abril de 2011

Almoço de domingo

Riu-se. E como de costume tremeu o corpo todo. Toda a sua opulencia sacudia-se com a gargalhada gostosa, longa.
Tinha o cheirinho de maçã com canela, dos bolos que fazia. Sempre que me recordo dela me vem os olhos castanhos e alegres, sorrindo o tempo inteiro pra mim.
É assim que vou desenhando minhas memórias. Lembrando das cenas entrecortadas, dos perfumes, dos gostos,
e vou juntando uma peça na outra, como em um quebra-cabeça.
Vou construindo meu passado como um mural de fotografias. Adiciono sempre uma música de fundo, para me confortar.
Às vezes adiciono também algumas lembranças de um filme que assisti, faço algumas modificações
e crio outros momentos felizes, porque todo mundo precisa de passagens bonitas na vida.
Não que eu não as tenha, mas algumas se perderam no vasto terreno da minha fraca memória.
Então não sei dizer muito bem até que parte as lembranças são minhas e a partir de onde são lembranças alheias que recolhi e acolhi ao longo dos livros e histórias
que me percorreram.
Chegava na casa dos meus avós todo o domingo para o almoço de família e meu avô vinha mancando com a perna que não dobrava,
devido a um ferimento que sofreu na guerra, me abraçar. Me olhava com aqueles olhos muito azuis e perguntava com aquele sotaque espanhol, quase indecifrável pra mim:
"Quieres un caramelo, niña?" Sacava de dentro do armário um pote cheio de balas de cereja e me deixava pegar um monte delas.
Minha avó estava sempre risonha, com os caracóis prateados enfeitando seu rosto e um óculos enorme que a deixava com um ar eternamente doce.
Sua figura me lembra uma coruja antiga e sábia.
Ficava tão feliz quando chegavamos que não parava de falar.Falava e ria-se. Sacudia-se por inteira.
Contava as novidades, me abraçava muito e sempre cozinhava um banquete, que fazia com que nós passássemos a semana comendo os restos das delícias.
Comprimentava a todos e depois subia as escadas comigo, para o segundo piso, e passavamos um tempo sem fim brincando de bonecas.
Brincavamos sem pausas, até que meu avô nos convocava pra oração de antes das refeições. Sentávamos à mesa e ouvíamos a rádio espírita que abençoava a comida e a todos.
Comíamos uma refeição farta e vegetariana. Finalizávamos aquele momento juntos comendo os doce que minha avó preparava. Pecava pelo excesso, sempre.
Aquelas tardes eram verdadeiramente aconchegantes e cheias de maravilhas. Depois dos meus pais passarem a tarde conversando com meu avô, por vezes, com meu tio e minha tia,
e eu brincar e ouvir histórias mágicas sobre burrinhos verdes e dar alface e tomate pro Jorgiho, o cágado, eu pedia insistentemente pra dormir lá.
Por mim, esses dias na casa deles, não teriam fim nunca.
Nos dias que meus primos também iam pra lá nós brincavamos de pique-esconde no jardim. Eu sempre me escondia no meio das flores.
Uma vez eu me escondi atrás da Comigo-Ninguém-Pode. Meu primo, que é mais velho do que eu uns 4 anos,
disse que eu nunca mais poderia colocar os dedos nos olhos e nem na boca.
Mesmo que eu lavasse as mãos um milhão de vezes eu iria morrer envenenada quando fosse comer alguma coisa.
Eu chorei tanto que ele teve que me provar que eu não ia morrer colocando ele mesmo a mão na planta e depois na boca.
Na parte de trás da casa ficava uma área reservada pro Jorginho, que depois que meus avós faleceram e nós o doamos para o Jardim Botânico desobrimos que era Jorginha.
O cágado ficava sempre escondido debaixo de uma montanha de folhas secas.
Eu levava alface e tomate pra ele e, enquanto eu o chamava pelo nome, ia pouco a pouco se mostrando. Vinha devagarzinho, esticava o pescoço e comia na minha mão.
Era um ritual incrível.
Outra lembrança que tenho é das vezes em que eu tomava banho lá e a minha avó derramava o vidro quase inteiro de perfume de alfazema em mim.
Eu ficava cheirando a alfazema por dias. Ela dizia que era bom pra matar piolhos, acalmar as crianças, harmonizar o espirito e matar os gérmes.
O cheiro da alfazema é o cheiro dessa época.
No andar de cima tinha um quarto que nós chamavamos de quarto do entulho. Lá havia as mais variadas bugingangas e troços sem utilidade.
Era lá também que ficavam guardados todos os jogos e brinquedos que eu adorava.
O que era um problema, porque a rinite alérgica e bronquite me condenavam todas as vezes que eu adentrava o paraíso.
Hoje senti a nostalgia me invadindo primeiro pelas narinas e depois consumindo o resto do corpo inteiro.
Foi o cheiro de comida que vinha da rua que deu inicio a essa sequencia de recordações.
Me fez lembrar de coisas que eu já nem sabia mais que ainda habitavam o terreno das memórias esquecidas.
Então, num impulso saudosista e de sensibilidade exagerada, resolvi percorrer de novo essas tardes e visitar a casa dos meus avós.
Comecei entrando pelo portão da frente, branco, que se iluminava por raios de sol tímidos do final da tarde, que escorriam por entre os galhos das árvores.
Passei pela varanda e me deparei com o hall de entrada, todo branco. Vovô sentado em frente a televisão, na sala ao lado. O vi do hall.
Começou um filme de guerra e ele rapidamente a desligou. Odiava filmes de guerra. Pegou a bengala e mancou até onde eu estava.
Usava calças compridas, cáqui, uma blusa branca e os suspensórios.
Me olhos com os olhos azuis enormes e senti seus fios de cabelo brancos e macios como a penugem de um pássado contra o meu rosto, enquanto me abraçava.
Atravessei a sala e o corredor e minha avó estava arrumando a mesa da copa para o almoço.
Édina, a moça que trabalhou lá desde que eu era 'uma minhoquinha branca', ajudava-a. Minha avó ficou muito feliz com a visita. Riu bastante e me abraçou muito.
Falava sem parar. Um vestido de flores pequenas e a armação dos óculos de coruja enquadravam olhinhos de luz.
Percorri a casa toda. Passei pelos corredores e tentei redesenhar todos os quadros das paredes. Todas as santas em seus devidos reservatórios. Achei os pequenos livros.
Comi uma bala de cereja. Entrei no quarto de cima. Meu paraíso infantil. Aspirei aquela lembrança junto com todos os ácaros e senti que já nao me faziam espirrar.
Depois desci as escadas e visitei o Jorginho. Lembrei de todas as fadas e duendes que dividiam comigo o jardim daquela casa.
Dividiam comigo as noites em que eu demorava a dormir e observava meus avós, um em cada cama, dormindo profundamente.
Minha avó ressonando e meu avô coberto por uma tela que protege bebês de insetos. Ele tinha uma pele muito delicada e qualquer picada de mosquito feria essa superficie alva e fina.
Hoje não sei dizer o que me fazia acreditar em criaturas místicas. Se era o sono, a imaginação, os livros, ou as tardes e noites na casa dos meus avós.
Dessa vez não foram eles que vieram me visitar, mas eu que os procurei nos cantos da sala, cozinha e jardim. Embaixo de pedras e dentro das flores.
Encontrei todos eles. Percorri aquela casa e passei meus dedos pelas paredes insólidas. Sentei no banco que não existe mais. Pousei meus olhos sobre aquela casa com contornos cada vez mais difusos.
O quarto de brinquedos, já não sabia mais se ficava no andar de cima ou debaixo. E no corredor de baixo uma porta se abria e eu já nao me lembrava mais para o que.
Na verdade ela não se abria mais. Guardava ali dentro alguma reminiscência que eu não tinha acesso. A copa se esfumaçava enquanto os objetos iam sumindo pouco a pouco.
Não havia mais mesa. Paredes desapareciam e a geografia da casa se alterava. Nada além de mim vagava naquele terreno.
Ainda podia ouvir o som da rádio espírita, muito ao longe, abençoando o almoço que não teríamos nesse domingo.
Pelo menos o portão ainda existia. Não era mais branco, mas os raios de sol ainda iluminavam timidamente, escorrendo por entre os galhos das árvores.

4 comentários:

  1. Nossa Isa, esse texto tá de uma beleza incrível...tá escorrendo ternura e saudade...

    Pensei que fosse a única a sofrer com os banhos de alfazema! a única diferença era que a minha mãe que passava em mim, pra eu não pegar piolho!kkkk

    maravilhoso Isa. Delicioso de ler.
    :*

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  2. Isa, tenho medo de quebrar seus textos com um golpe de vista, de tão delicados que me parecem. Parabéns!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Lindo! Fico, assim como a Tainá, com medo; medo de escrever mais, aqui no comentário, por saber que não conseguirei expressar os sentimentos que seus textos provocam. Suas memórias estarão sempre com você...

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