sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Acordei

Acordei no meio da noite com o coração espancando o meu peito. Meu ritmo cardíaco estava tão acelerado que imaginei que eu pudesse ter um enfarte.
Continuei deitada na cama, sem me mover, apenas escutando como a adrenalina podia ter um som tão alto no meio da madrugada.
Como se um tambor de escola de samba soasse descontroladamente dentro de mim.
Não só no meu peito, mas se expandindo até minhas mãos, meus dedos, minhas pernas e a minha cabeça, que latejava.
Coloquei as mãos sobre o peito e fiquei esperando que meu corpo fosse, aos poucos, se acalmando. Não me lembro de onde veio esse impulso emocinal.
Tentei me lembrar do que eu estava sonhando, mas não consegui trazer pro meu consciente nenhum pesadelo, ou vertigem.
Também não havia nenhum outro som no meio da noite que pudesse ter me feito acordar de supetão.
Meus nervos estavam à flor da pele e não existia nenhum motivo concreto pra que eu pudesse fazer o que costumo fazer comigo quando me encontro nessas situações:
Começar uma conversa longa e pausada comigo mesma, me explicando que não há motivo pra que eu me assuste. Eu simplesmente não conseguia me consolar.
Permaneci no escuro, deitada, com o coração pulando nas minhas mãos, que tentavam apertá-lo de volta pra dentro de mim.
Durante esse tempo que escorria vagarosamente, como um conta-gotas, fiquei olhando para o teto branco.
O teto todo branco, que se parecia com o meu pensamento.
Por um momento, confundi os dois, e já não sabia se eu olhava para o teto ou para o meu pensamento.
Era uma tela em branco, esperando por uma pincelada. Ou uma tela de projeção de cinema, esperando reproduzir o filme, que nem demorou muito pra começar.
Comecei a assistir a um filme ritmado pelas minhas batidas cardíacas, sempre aceleradas, onde eu caminhava. Não havia muitas coisas pra eu olhar nesse trajeto.
Aliás, tinha um milhão de coisas que se jogavam na minha frente, batiam contra o meu rosto, mas eu não as percebia e continuava uma caminhada acelerada em alguma direção duvidosa.
Eu andava e pisava em uns cacos de vidro, que faziam os meus pés descalços sangrarem, mas eu não sentia nenhuma dor.
Havia também muitos sons, vozes e música alta por onde eu passava, mas eu simplesmente não ouvia.
De repente eu parei em frente a um espelho. Fiquei me olhando, mas minha imagem não estava refletida. A única coisa que me mirava era uma máscara.
Fiquei com medo e quebrei o espelho. Olhei para o mosaico de imagens compostas no chão. Como fragmentos de uma caminhada que já não fazia mais tanto sentido.
Senti um gosto amargo na boca e me deitei ao lado de alguém que estava olhando para um teto branco, com as mãos sobre o seio, como se não quisesse deixar o coração escapulir.
Senti o medo dela. Demos as mãos e ficamos olhando para uma tela toda branca.
Cada vez mais branca, conforme o dia ia amanhecendo e a luz do sol ia penetrando a janela e clareando o teto.
Confundi o teto, a tela e o meu pensamento. Depois confundi o meu pensamento com o da mulher deitada ao meu lado.
Depois confundi nossas mãos e percebi que a única mão que eu apertava era a minha, que estava apertada contra o meu peito.
Senti que meu coração já não estava mais tão acelerado. Fechei os olhos e acho que consegui dormir.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

27 de setembro

Duas senhoras entram numa cabine de trem. Sentam-se frente-a-frente, mas ainda não se viram.
Uma ajeita alguma coisa dentro da bolsa enquanto a outra repousa o olhar sobre ela. De repente a reconhece. Leva um susto e sente um frio na barriga.
Quando a outra finalmente encontra os óculos e os coloca se fitam durante um longo período de uns 3 segundos. A senhora de óculos sorri. A outra sorri de volta.
Quantos anos se passaram. Dão as mãos e sentem a pele fina uma da outra. Os nódulos dos dedos muito mais aparentes do que 50 anos atrás.
A primeira a olhar tira de dentro da bolsa as fotos dos netos e mostra à outra.
Seus olhos se enchem de ternura. Retira seus familiares de dentro da bolsa também e os apresenta.
Tantos anos se passaram. No meio das fotos e das familias misturadas encontram uma foto das duas, cada uma com seus 17 anos.
Os cabelos castanhos e longos, os sorrisos largos, uma sentada num banco e a outra por trás, abraçando-a pelo pescoço.
Deram as mãos novamente pra sentir de novo o calorzinho daquela amizade. Algumas lágrimas ameaçam cair, mas elas dão um tapinha na mão uma da outra como quem diz "chorar não pode!".
Enquanto o trem corre em direção ao futuro das duas senhoras, aquele vagão corre contra o tempo e volta para um passado onde elas duas podem ser amigas novamente.
Um tempo onde iam para casa uma da outra, fechavam-se no quarto e passavam horas intermináveis conversando sobre festas, namorados, cabelo, amigos, medos, idéias, sonhos.
Desabafavam sobre perdas, sobre o mundo que as envolvia, sobre corações partidos, sobre sonhos, expectativas, desejos.
Num tempo onde não havia uma familia formada, não haviam casas que elas mesmas tinham contruido, cada uma em uma cidade diferente.
Não haviam dois maridos, filhos, nem uma mãe doente e dois pais falecidos.
Não havia um divórcio, não havia sofrimento, não havia um filho que foi morar no Japão, nem uma filha que virou budista.
Não havia distância física e muito menos espiritual.
O vagão inteiro ganhou o cheiro desse tempo, onde as tarde tinham cheiro do bolo que a mãe preparava para as duas e as manhãs tinham o cheiro do orvalho.
Antes do trem chegar na estação, elas não estavam mais naquela cabine. Tinham sido transportadas para uma outra época, onde aquela amizade podia ser recuperada.
Ali só restavam fotos de família, um óculos e um leve aroma de terra molhada. As gotas da chuva desenhando os trilhos do trem na janela de vidro.