sexta-feira, 1 de outubro de 2010

27 de setembro

Duas senhoras entram numa cabine de trem. Sentam-se frente-a-frente, mas ainda não se viram.
Uma ajeita alguma coisa dentro da bolsa enquanto a outra repousa o olhar sobre ela. De repente a reconhece. Leva um susto e sente um frio na barriga.
Quando a outra finalmente encontra os óculos e os coloca se fitam durante um longo período de uns 3 segundos. A senhora de óculos sorri. A outra sorri de volta.
Quantos anos se passaram. Dão as mãos e sentem a pele fina uma da outra. Os nódulos dos dedos muito mais aparentes do que 50 anos atrás.
A primeira a olhar tira de dentro da bolsa as fotos dos netos e mostra à outra.
Seus olhos se enchem de ternura. Retira seus familiares de dentro da bolsa também e os apresenta.
Tantos anos se passaram. No meio das fotos e das familias misturadas encontram uma foto das duas, cada uma com seus 17 anos.
Os cabelos castanhos e longos, os sorrisos largos, uma sentada num banco e a outra por trás, abraçando-a pelo pescoço.
Deram as mãos novamente pra sentir de novo o calorzinho daquela amizade. Algumas lágrimas ameaçam cair, mas elas dão um tapinha na mão uma da outra como quem diz "chorar não pode!".
Enquanto o trem corre em direção ao futuro das duas senhoras, aquele vagão corre contra o tempo e volta para um passado onde elas duas podem ser amigas novamente.
Um tempo onde iam para casa uma da outra, fechavam-se no quarto e passavam horas intermináveis conversando sobre festas, namorados, cabelo, amigos, medos, idéias, sonhos.
Desabafavam sobre perdas, sobre o mundo que as envolvia, sobre corações partidos, sobre sonhos, expectativas, desejos.
Num tempo onde não havia uma familia formada, não haviam casas que elas mesmas tinham contruido, cada uma em uma cidade diferente.
Não haviam dois maridos, filhos, nem uma mãe doente e dois pais falecidos.
Não havia um divórcio, não havia sofrimento, não havia um filho que foi morar no Japão, nem uma filha que virou budista.
Não havia distância física e muito menos espiritual.
O vagão inteiro ganhou o cheiro desse tempo, onde as tarde tinham cheiro do bolo que a mãe preparava para as duas e as manhãs tinham o cheiro do orvalho.
Antes do trem chegar na estação, elas não estavam mais naquela cabine. Tinham sido transportadas para uma outra época, onde aquela amizade podia ser recuperada.
Ali só restavam fotos de família, um óculos e um leve aroma de terra molhada. As gotas da chuva desenhando os trilhos do trem na janela de vidro.

4 comentários:

  1. uau..que texto belíssimo Isa, adorei.

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  2. Isadora
    Quanta beleza, sensibilidade e delicadeza!
    A gentileza deste texto me deixa muito feliz e emotivo.
    Só mesmo um coração tranquilo e pleno de amor pode produzir um texto tão lindo.
    Só alguem que viveu tais sentimentos pode lembrar como é!
    Maravilha!

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  3. oi, bonita!
    acabei descobrindo seu blog.
    gostei muito! bom te ver melhor assim, pelas palavras.
    um beijo!

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  4. "só mesmo um coração tranquilo e pleno de amor pode produzir um texto tão lindo"

    concordo com seu pai, dozinha. quanta delicadeza, quanta amizade eu pude sentir lendo o seu texto. quanta ternura cabe dentro de vc!

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