domingo, 26 de junho de 2011

Gotejar Nocivo

A maneira como aquela maldita gota teimava em desabar do teto e perfurar o chão já ia me fazer perder o juízo. A única coisa que eu precisava era pôr termo àquele quadro. As cores iam bem, as idéias pioneiras já se haviam desenvolvido com fluidez até o estágio em que se encontrava o meu ofício. Mas aquela goteira estava a me fazer de parvo. Não havia caneca, toalha, pinico que cessasse o gotejar inexorável do meu desfalecido telhado. A encantadora pastorinha de minhas pinceladas parecia se afligir com o estrépito das gotinhas no assoalho, o que corroborava com o meu aborrecimento.
Minhas pinturas produzem esse efeito em mim, integramos-nos numa sintonia de sentimentalidade onde o que elas experimentam é parte do meu reconhecimento de mundo. Transfiro lhes minhas mágoas com as cores de plúmbeo e beterraba, terra e ocre, dando lhes um aspecto de frieza, dor e melancolia. Uso muito a cor negra também, que ratifica o meu lado obscuro e mórbido, minha fase lua nova. Quando me sinto tomado de ódio, uso do vermelho sangue, expressando todas as mortes, que seria capaz de fazer com minhas próprias mãos, nas telas de juta. Quando me sinto alegre também pinto, mas a vivacidade que há em meus pensamentos maléficos não se pode comparar aos meus raros momentos harmoniosos.
Maldita goteira. Torturando meus miolos e minhas genialidades com seu bulício calafriliante. Verde inglês, azul ultramar, violeta permanente e azul cerúleo... Ou azul petróleo? Golpeando minha própria cabeça, me rendi ao ser detestável e esdrúxulo que era aquela poça formada ao lado do meu criado-mudo. Peguei minha tela e minhas tintas e a minha amável pastora com feições de desnorteio e fui para o jardim. Verdade que chovia, mas antes o estrondo de milhares de gotas se sobrepondo do que um único cair de água que insistiu em me chamar mais atenção do que a minha ocupação.
Finalizei minha guardadora de gados com leves pinceladas de marrom van Dick, terra de sombra natural, amarelo nápoles e branco de titânio. Ela se parecia levemente com A Bebedora de Absinto, de Picasso, com suas marcas de expressão e de velhice precoce. A minha dama, porém, apesar de solitária como a outra, se encontrava em um ambiente um pouco mais iluminado, embora chuvoso, como no dia em que a criei.
A goteira foi consertada, enfim. Minhas canecas puderam voltar a exercer suas verdadeiras funções de me servirem o extemporâneo chá com canela de minhas tardes exíguas. E meus pinicos, até então pérfidos auxiliadores, me servem como nada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário