sábado, 14 de agosto de 2010

Um conto triste

Podemos começar com uma sala grande e bem arejada. Branca, toda branca. Pra dar a impressão de ser maior ainda. Ou então de alguma outra cor clara. Mas seria melhor se fosse branca.
Tem uma janela grande bem centralizada com cortinas que vão até o chão. Azuis. As cortinas não tem outra opção. Um vento entra e balança elas, dando a impressão de ondas no mar.
Consegue visualizar?
Os dois entram e ele olha pela janela. Ela olha para as cortinas. Ele suspira e ela afirma com a cabeça, sorrindo de leve. Não se olham, mas se entendem. Vão comprar.
Uns anos depois a gente adentra a casa de novo. Ainda não determinei o tempo. As cortinas ainda são as mesmas e a sala ainda é branca. Ou a outra cor clara que a gente decidir.
Mas agora tem uns móveis. A casa agora é habitada. Tem que ser visível esse contraste de casa inabitada e habitada.
Tem um sofá grande na sala, uma estante de livros, uma cômoda com uns porta-retratos em cima. Tem que ter mais coisa, porque a sala é grande, lembra?
É pouco iluminada porque eles acharam que só a luz que entrava pela janela e o fato de ser um cômodo de cores claras já seria o suficiente. Não era.
Toda as vezes que ele ia ler na poltrona (esqueci de dizer que tinha uma poltrona, tipo aquelas típicas "poltrona do papai") ele reclamava da ausência de luz.
Ela dizia que era a idade. Se ele não teimasse em não usar óculos não reclamaria tanto. A sala tem uma porta que dá na cozinha. Fica bem de frente pra poltrona.
Ele observa a porta por cima do jornal. Não da pra ver a mulher, mas ele fica escutando os barulhos dela lavando a louça. Ela diz que eles precisam comprar logo a lava-louça.
Ele murmúra qualquer coisa e vai até a janela. Observa com o mesmo olhar que da primeira vez que estiveram na casa. É um olhar que ainda estou pensando também.
Não queria que fosse muito sonhador. É meio que de clausura. Como um pássaro na gaiola. A partir desse olhar todo mundo já vai entender mais ou menos a história.
Depois dessa pausa quero fazer um jogo de cenas. A gente vai lá pra frente e depois vai voltando nos fatos pra que dê pra entender o que passou.
Mostra ela sentada no mesmo sofá grande, bem de perto. Só mostra o rosto dela e o sofá, sem dar pra ver o lugar que o sofá tá. A boca dela contraída. Até que ela solta os lábios.
Como se estivesse prendendo a respiração durante um tempo longo e depois soltasse, ofegando um pouco. O sofá é muito aconchegante, mas quero a impressão de que ela não está nada confortável.
Ela fita o apartamento com olhos de vidro, apáticos. Fica sem expressão durante um tempo logo. Sem som! Só o rosto. Até que ela contrai levemente a testa.
E é então que ela mostra toda a dor. Nessa tênue expressão dá pra sentir a dor dela. Ela chora na garganta. Nos olhos não.
Levanta e vai até o banheiro e então percebemos que não é a casa dela. É um apartamente muito pequeno, apertado, com muitos móveis e de cores escuras.
Dentro do banheiro ela liga a torneira, joga água no rosto e se olhos no espelho, que está com a parte de baixo quebrada.
Contempla seu rosto durante um tempo. Os olhos cor de azeitona, meio amendoados, a boca de gato, a cicatriz na sobrancelha. Passa os dedos sobre a cicatriz.
Éuma mulher bonita, jovem. Joga muita água sobre o rosto, com certa violência e sem cuidados. Molhando também os cabelos curtos e a blusa branca.
Está sem sutian e os seios ficam a mostra, com a blusa colada. Pára e se olha de novo.
Há tanta angústia nos olhos que pode ter o som no fundo de uns carros passando, uma bozinas, sei lá.
Ela vai até a sala de novo e pega o telefone. Disca um número com as mãos tremendo, meio obcecada. Atende a voz de uma mulher mais velha e ela diz que tá precisando de um consolo.
Acho que ela era viciada em cocaína. A voz no telefone pergunta se ela tem certeza e ela acaba desligando, com um pouco de vergonha pela fraqueza, um pouco de raiva dela mesma e dele.
Pega no bolso um papel muito amassado e abre. As letras já estão meio manchadas de tanto que ela manuzeou o bilhete. Beija o bilhete com força. Depois lambe o papel e finalmente rasga com muita raiva.
Como numa crise. Amassa ele todo e enfia na boca. Mastiga o papel e engole. Até agora ela não chorou. Está completamente sufocada, percebe? Dá pra ver, né?
O telefone toca. Ela deixa tocar algumas vezes porque está engasgada com o papel e com o choro preso.
Atende e agora é a voz de um homem. Ele pergunta se ela sabe a diferença de uma bala de revólver e de uma bala de côco. Ela dá de ombros e ele diz que está na janela.
Ela vai até o parapeito levando o telefone preso entre a orelha e o ombro e o resto do telefone na mão, porque é um telefone com fio. Vê o amigo e sorri.
"Sobe." "Já vou, meu bem."
Ela desliga o telefone e vai até o corredor esperar por ele na porta do elevador porque está muito anciosa. Ficamos dentro do apartamento ouvindo o barulho dela batecando na parede.
Ouvindo o barulho do elevador chegar. Ouvindo o barulho de um abraço brusco. Ouvindo um grito de dor. Dor sofrida. Dor da alma. Dor dessas difíceis de sarar.
Ouve-se baixinho uma voz de homem: Eu sei, criança, eu sei. E ela responde no meio do choro tumultuado e sem cessar: Nunca vai parar de doer?
A voz masculina torna a ser ouvida: Sabe o que eu te trouxe? Bala de côco.
A câmera vai andando durante o diálogo e passa pelas caixas de papelão cheias de coisas: abajur, cobertores, uma caixa de costura, porta-retratos sem fotografias,
uma caixinha de primeiros socorros. Passa pelo sofá grande, pela poltrona, e pára na janela. Bem menor do que a outra, num canto da sala, meio fora de contexto.
As cortinas azuis penduradas, bem maiores do que a janela, ainda balançando com o vento. Focaliza na cortina. Barulho de ondas do mar quebrando. Corta.

Um comentário: