domingo, 15 de agosto de 2010

Afetos

Acordei com frio e percebi que a falta do seu corpo encostando no meu deixava um gelado insuportável.
Olhei depressa para o lado e quando vi o contorno do seu corpo na penumbra do quarto senti o alívio invadindo o meu peito.
Seu corpo moreno reluzia, completamente relaxado. Me aproximei de você e deixei o seu calor se apossar de mim, esquentando até dentro da alma.
Fiquei naquele nosso ninho, enroscado em você, até o começo do dia acabar com a nossa felicidade de se amar.
Levantei e fui até mesa do computador. Peguei as fotos que revelei ontem, do carnaval e fiquei adimirando seu sorriso.
Peguei uma em que você estava vestindo uma saia longa de hippie e tinha umas flores na cabeça. Guardei comigo. Organizei as outras e botei no envelope de volta.
Ontem, quando você disse que vinha, cancelei todos os meus compromissos:
Aula de dança, de alongamento, ida ao banco, acerto de contas do aluguel do apartamento.
Fui ao mercado comprar comida pra cozinhar pra você. Passei na feira e comprei as angélicas pra deixar a casa com o cheiro da sua flor preferida.
Fiz faxina na casa. Troquei o lençol da cama. O dia ficou pequenininho pra fazer tanta coisa.
Quando anoiteceu e já tava chegando a hora de você voltar do show eu tomei um bom banho, me perfumei e fiquei esperando você no quarto.
Depois te aguardei na sala, porque a ansiedade foi muita.
Quando a porta rompeu na sua entrada glamurosa senti que meu coração estalou no compasso do samba do bar aqui da rua.
Toda a sua volúpia de mulato, todo o seu gingado, aquele sorriso maravilhoso que me tira do eixo não me deixou nem fazer uma cerimônia,
um charme de quem não tá louco de desejo. Minhas pernas tremeram e você, todo suado e com a pele coberta de porpurina, me enlaçou e sussurrou no meu ouvido "Já tá excitado, nego?".
Depois de comer, dançar na sala até a música do bar parar e o nosso suor escorrer igual a uma torneira toda aberta,
beijar você até o seu batom sair e o nosso cheiro tomar conta do apartamento inteiro.
Depois de rasgar a sua roupa, pedir pra você vestir o figurino do espetáculo pra mim, rasgar o vestido do show e você ficar puto comigo.
Depois da cena que você fez dizendo que eu tinha que ser mais contido e depois me agarrar dizendo que você me amava de qualquer maneira.
Depois de faltar luz e a gente tomar banho à luz de velas, você ir pra cama comigo, você ameaçar ir embora pra frança, você me ver me rasgando em desalento,
chorando igual a uma viúva, e depois me pedir desculpas e me enxer de carinhos.
Depois de você transar comigo, foder comigo e fazer amor comigo, você dormiu. E aí que eu pude ter o meu momento racional.
Pensei na nossa vida conturbada, na agitação, nas perdas que tivemos ao longo do caminho, nas renúncias, nos desapegos, nos perrengues, nas alegrias
e fui construindo uma colcha de retalhos com sonhos e frustrações. Botei meu espírito aconchegado naqueles fragmentos de trajetória.
Ajeitei as incostâncias, que são o arrimo desse caminho torto, e as minhas urgências quando se trata de você e pude deitar de novo na cama.
No meio da ressaca de pensamentos, deixei a correnteza de incertezas e medos ir me levando cachoeira abaixo, num tumulto de sentimentos.
Fechei os olhos e deixei as ondas da melancolia da madrugada arrebentarem na minha cabeça. Senti a boca salgada da maresia, ou das lágrimas que me escorriam.
Igual a uma alga, me senti sendo jogado contra as rochas, até ser resgatado pela areia calma da praia. Me agarrei à sua tranquilidade e larguei os receios dentro d'água.
Você, com esse porte, virou o meu porto de atracação. Me fazendo cafuné pra melhorar meu dia, com esse seu humor volúvel, lendo Nelson Rodrigues pra mim,
transformou essa minha vida caótica numa paixão inculpável e devastadora.
Eu sei que você vai acordar, tomar café e ir embora. Mas enquanto você repousa ao meu lado eu me deixo desmanchar pelas suas manias e jeitos.
Esse negócio de amar faz da vida um turbilhão de afetos. Depois dizem que bicha é afetada e acham que tão ofendendo.
Eu posso até ser chamada de bicha. Afetada, graças a Deus, porque é de afetos que se vive.

Um comentário: